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"Tre Posti", o Ferrari que mostrou o futuro.

João Vale conta a história do precursor dos Ferrari de estrada com motor central e primeiro desportivo com posto de condução central.
João Vale
9 de dez. de 2024

Fotos: Saratoga Auto Museum / Gooding & Company / avvocato.giovanniagnelli.it / Ruoteclassiche / autodesignmagazine.com / supercarnostalgia.com/ dannatavintage.com

A Ferrari desenvolveu ao longo da sua existência inúmeros automóveis de sonho que se tornaram ícones de estilo e marcaram gerações. Pelo meio, foram sendo criados determinados projectos mais arrojados, sendo que alguns permaneceram como autênticos tesouros escondidos que não foram tão conhecidos pelos fãs da marca do Cavallino Rampante e dos automóveis.

Todos estes projectos apresentavam, à sua maneira, formas de design voluptuosas, inovações técnicas pouco convencionais para a sua época, materiais excepcionais e raros em determinadas peças e, característica comum, uma incrível atenção a determinados pormenores. O Ferrari 365 P Berlinetta Speciale foi um destes exemplos. 
 

A transposição do mundo do coleccionismo para a história automóvel
Apaixonado pelo mundo das miniaturas automóveis, dei por mim a passar os olhos por um modelo deste automóvel na escala 1:43, do fabricante alemão AutoCult GmbH, dando-me o mote perfeito para escrever um pouco sobre um Ferrari com uma história peculiar. 

O início do projecto
A Pininfarina lançou o repto com o concept em 1966, baseado no design de Aldo Brovarone, que mais tarde, em 1974, ascendeu a chefe do departamento de estilo da Carrozzeria Pininfarina até 1988. De salientar que foi do engenho de Brovarone que sairam do papel automóveis como o Dino 246 GT, o Peugeot 504 Coupé ou o Lancia Gamma Coupé, entre outros.

Inicialmente uma produção única- Chassis 8971 
Destinado a ser um show car, o chassis 8971 foi mostrado ao público pela primeira vez no Salão Automóvel de Paris na cor Branco Gardenia (White Gardenia), em Outubro de 1966, antes de viajar pelo mundo (um verdadeiro Tour du Monde) até Maio de 1967. Nessa altura, o exemplar único foi adquirido pelo empresário Luigi Chinetti, fundador, em 1958, do Team N.A.R.T. (North American Racing Team), e primeiro importador da Ferrari para os Estados Unidos).

Não é preciso ser um fã incondicional da Ferrari para notar as semelhanças entre o “Tre Posti” e o famoso Dino 206 GT. Observando o automóvel, à primeira vista, é o formato harmonioso do conjunto que nos atrai, com as linhas delgadas, longas e limpas, que se prolongam e inclinam até terminar na parte posterior. Embora fosse mais comprido, foi um precursor das linhas vistas nos futuros modelos Dino.

Uma característica invulgar
Os detalhes exteriores incluíam um inovador tecto de abrir em vidro, uma tampa de combustível bem marcada e visível e tomadas de ar antes das rodas traseiras (que viriam a ser uma imagem de marca dos Ferrari de motor central). No entanto, a característica mais notável estava no habitáculo: este automóvel tinha três lugares, com o banco do condutor ao centro, surgindo daí o apelido de “Tre Posti” pela sua invulgar configuração. Ao contrário do que muitos possam imaginar, o McLaren F1 não foi o primeiro automóvel com esta configuração.

Uma nova arquitectura de motor central
Pela primeira vez, um Ferrari de estrada utilizava uma arquitectura de motor central, sendo o bloco escolhido, o mítico V12 Colombo montado a 60º, com 4.4 litros de capacidade e 375cv, alimentado por três carburadores Weber 40DFI. Na verdade, a mecânica foi herdade, em grande parte, do Ferrari 365 P2 de competição.

Este motor contava com um sistema de lubrificação por cárter seco, a melhor forma de manter o óleo a fluir, independentemente do desvio do motor em relação à vertical ou às forças G. 

As dúvidas de Enzo Ferrari quanto à segurança
A colocação de um motor central traseiro abriu novos horizontes e desafios a Il Commendatore. O “Tre Posti” nunca foi oficialmente aprovado pela Ferrari, e por este motivo, saiu da fábrica como sendo um chassis de competição do 365/P2 com modificações. 

No entanto, não há dúvidas de que o “Tre Posti” lançou as bases para modelos de sucesso da Ferrari que iriam adoptar esta configuração, como o mítico Ferrari 365 GT4 BB, apresentado em 1971 no Salão de Turim e comercializado em 1973.

Ao contrário de muitos dos automóveis exclusivos da colecção de Agnelli, Enzo Ferrari mostrou-se muito reticente em construir o “Tre Posti” (como mencionado mais acima neste texto) mesmo com uma configuração de dois lugares, pois era um tradicionalista e acreditava que um V12 de 4.4 litros com motor central seria muito perigoso para as estradas.

A paixão de Agnelli pelo "Tre Posti" e a construção do segundo exemplar (chassis 8815)
Giovanni “Gianni” Agnelli assumiu o comando da Fiat em 1966, após a reforma do presidente da empresa, Vittorio Valletta. O avô de Agnelli co-fundou a Fiat em 1899 e conduziu-a até à sua morte em 1945. O controlo passou então temporariamente para Valletta, uma vez que o pai de Gianni Agnelli faleceu num acidente aéreo em 1935.

Gianni Agnelli era um apaixonado por automóveis exóticos e possuía uma selecção de modelos Ferrari desde o 166 MM de 1950, muitos dos quais altamente personalizados de acordo com o seu gosto individual. 

A participar no Salão de Paris de 1966, Agnelli viu o Ferrari 365 P Berlinetta Speciale e imediatamente se apaixonou pelo automóvel e mandou produzir um exemplar para si, que lhe seria entregue no ano seguinte em Turim. Como fã de tejadilhos de vidro, carroçarias invulgares e detalhes personalizados, não foi difícil perceber o apelo do “Tre-Posti”.

O percurso de “vida” dos dois Ferrari 365 P Berlinetta Speciale

Chassis 8971
Luigi Chinetti Sr. vendeu o seu 365 P duas vezes. Primeiro, a um banqueiro de Nova Iorque, por 26 mil dólares em 1967. Este nunca deu o devido valor à máquina, sendo inúmeras as suas queixas do modelo, desde a dificuldade de estacionamento até ao grande tecto de abrir que, combinado com a falta de ar condicionado, significava que o habitáculo atingia temperaturas muito elevadas quando exposto à luz solar. Estes problemas levaram-no a ir ter com Chinetti e trocar o “Tre Posti” por um 365GT 2+2 com ar condicionado. 

O “Tre Posti” foi novamente vendido, primeiro a um coleccionador holandês e depois à neta de John D. Rockefeller, embora exista pouca informação sobre o automóvel neste período. O 8971 regressou finalmente a Chinetti em 1969, permanecendo na família desde então.

Foi a leilão em 2014 com 7.900 km percorridos, mas a oferta máxima de quase 23 milhões de dólares foi rejeitada!

Anos mais tarde, o filho de Chinetti, Luigi Jr., diria que “se a Ferrari o tivesse construído, nunca ninguém teria pensado duas vezes no Lamborghini Miura”.

Triunfo no Concurso de Elegância de Villa d´Este de 2022
O Ferrari 365 P Berlinetta Speciale Tre Posti chassis 8971 venceu em 2022 o troféu “Auto&Design” no Concurso de Elegância de Villa d’Este 2022. Nas fotos podemos vê-lo com Roberto Quiroz da RQ Collections.

O chassis 8815
Gianni Agnelli manteve o seu exemplar durante alguns anos, antes de o vender nos Estado Unidos. O “Tre posti” 8815 sofreu duas alterações de cor ao longo da sua vida, primeiro para azul metalizado, seguido de um vermelho mais tradicional. 

Agnelli disse sobre o carro: “Não tinha tempo de parar antes de as pessoas estarem imediatamente à sua volta. Mas foi divertido. Tinha uma aceleração monstruosa. Bastava habituar-se ao banco do condutor no meio, porque nos dava um ponto de referência para qualquer lado, direito ou esquerdo.”

Numa visita a Turim, David Kopf viu o Ferrari 365 P Berlinetta Speciale de Agnelli e perguntou sobre a disponibilidade do carro, tendo sido inicialmente informado de que o mesmo não estava à venda. No entanto, após alguma persistência, o acordo de venda foi finalmente concluído e o chassis 8815 partiu para a colecção de Kopf na Califórnia. David Kopf manteve o Tre-Posti durante cerca de quatro anos e em 1974, vendeu-o também ao californiano Bud Keeney, que posteriormente o repintou de preto. Keeney tinha uma pista de uma milha no seu parque industrial em Irvine, onde o chassis 8815 era frequentemente usado. 

Em 1976, Keeney vendeu o Ferrari ao magnata do petróleo texano e proprietário da equipa de corridas John Mecom Jr., que o pintou de vermelho e o manteve consigo durante cerca de 13 anos.

Durante o inverno de 1988/1989, o chassis 8815 foi vendido ao conhecido concessionário Edgar Bensoussan, em França, que o repintou de azul metálico claro.

De 1994 a 2018, o carro esteve com um coleccionador de Hong Kong e posteriormente regressou à Europa, tendo sido submetido a um minucioso restauro com a colaboração de nomes que dispensam apresentação,como a Autoficcina Bonini, a Cremonini Classic, a Brandoli e a Kidston SA. Todos os intervenientes trabalharam em estreita colaboração com o chefe de design Leonardo Fioravanti, com o objetivo de trazer o mítico Ferrari 365 P Berlinetta Speciale à sua condição original.

O sonho de muitos amantes dos automóveis em ver esta peça única novamente de volta à estrada, concretizou-se há cerca de um ano, com a Kidston Motor Cars a presentear-nos com este belo vídeo evocativo, onde vemos o Ferrari 365 P Tre Posti regressar à casa que o acolheu alguns anos após a sua construção.

Este texto, surgido à volta de uma miniatura automóvel, serve como uma singela homenagem a dois homens que muito deram à Itália e ao mundo automóvel, Enzo Ferrrari e Gianni Agnelli. 

Sem o acordo com a FIAT, celebrado a 18 de junho de 1969 e anunciado três dias depois, dificilmente a Ferrari teria conseguido desenvolver o seu sonho ao ponto de se tornar naquilo que é hoje, uma marca sinónimo de excelência, performance e estilo italiano em todo o mundo. 

Certamente que il CommendatoreL'Avvocato ficariam orgulhosos de ver as suas aventuras e desventuras perpetuadas no tempo.