Petrolicious, o mérito e a cultura de cancelamento
Antigamente era quase snob alguém dizer que não via televisão, hoje é normal. Por isso, admito que, actualmente, não vejo cinco minutos de televisão por semana, à excepção de alguns episódios da Masha e o Urso, por razões óbvias.
Snob seria dizer que dedico o tempo que me sobra a ler literatura clássica, mas a verdade é que todos os minutos em que não estou aqui diante do computador, ou a tratar de dependentes, passo-os no YouTube, como qualquer entusiasta que se preze.
Não há muito anos, se queríamos ver automóveis em acção, tínhamos de esperar pelos resumos do WRC e, mais tarde, pelo dia em que saísse um episódio do Top Gear. Hoje, todos os dias são debitadas horas de conteúdos de automóveis no YouTube, com qualidade profissional. Fora o resto...
A arte de contar histórias
A tecnologia facilitou a produção de conteúdos em vídeo com qualidade de imagem, mas o que a tecnologia não faz é criar histórias, ou saber contá-las. E, nesse capítulo, houve salto no profissionalismo dos conteúdos automóveis no YouTube em 2012, com a chegada da Petrolicious.
Afshin Behnia, um empresário da área digital, foi o fundador da marca. Ele e a sua mulher foram a força criativa responsável pela criação de um determinado estilo de curtos filmes que, até então, não existia. Um estilo que sublinhava a emotividade da relação entre os entusiastas e os automóveis, e também a exaltação dos grandes artesãos, restauradores e outros profissionais do mundo dos automóveis clássicos.
A notoriedade da marca Petrolicious cresceu, não só através dos vídeos, mas também através dos conteúdos escritos e fotografia no seu site. Foi criado um programa de subscritores com acesso a conteúdos exclusivos e outros benefícios, uma revista, etc.
Um marco incontornável
Sobretudo, o nível dos conteúdos foi subindo, e certos nomes destacados do meio foram surgindo a realizar ensaios de automóveis, com foco na sua história, nomeadamente Sam Hancock e o incontornável e saudoso Alain de Cadenet.
Ficam na história os trabalhos filmados em Portugal por Rosario Liberti com o BMW M3 Sport Evolution e o Mercedes-Benz 190E EVO II ou o BMW 3.0 CSL, mas também alguns “greatest hits”, como o filme sublime em que Derek Hill conduz a fundo, durante largos minutos, o Ferrari 250 GTO em tempos pilotado pelo pai.
A cada semana, os entusiastas de todo o mundo ficavam “em bicos de pés”, à espera de mais um vídeo que, inevitavelmente, seria o tema de conversas nas redes sociais durante dias a fio, com milhares e milhares de partilhas.
O estilo foi copiado à exaustão, mas nunca superado.
O pelourinho digital
Até que um dia, tudo terminou abruptamente devido a um evento triste e dramático, sem um mínimo de relação com o universo automóvel: a morte do afro-americano George Floyd, às mãos de um agente da polícia de Minneapolis. Este foi o episódio que fez aparecer no mapa o movimento Black Lives Matter, cujos protestos reuniram milhões de pessoas indignadas nas ruas. Como sempre, por entre os milhões de pessoas bem-intencionadas, surgiram muitos grupos violentos, que atacaram indiscriminadamente lojas e residências, deixando um rasto de destruição e pilhagem.
Por esta altura, o patrão da Petrolicious era uma espécie de figura pública no mundo automóvel, com muitos seguidores nas redes sociais que o fizeram pagar caro por um erro: o de verbalizar publicamente as suas opiniões, num tom nem sempre politicamente correcto. O post que desencadeou tudo, dizia que o movimento BLM se tinha tornado numa forma de “terrorismo doméstico”, por causa dos actos de vandalismo.
Não é preciso gostar das opiniões ou do tom de Afshin para discordar de tudo o que se sucedeu: um verdadeiro motim digital voltou-se contra o empresário e começaram os insultos, os ataques pessoais, mas, pior do que tudo, exigiu-se “a sua cabeça” e o boicote ao seu negócio.
O pior lado das redes sociais mostrou-se em todo o seu esplendor e bastou um par de semanas para que o tema tomasse proporções absurdas, com a ajuda de alguns concorrentes - como os líderes do site Jalopnik - a aproveitar a oportunidade e a usar a sua visibilidade para atirar gasolina para a fogueira.
As marcas que investiam na Petrolicious, como a Porsche, a eBay Motors ou a Turtle Wax, acorbardaram-se, e cortaram a ligação porque, alegadamente, este iraniano emigrado para os EUA, seria xenófobo...
A queda de uma marca de culto
Com todos os canais de comunicação da marca invadidos por “trolls”, inevitavelmente, Afshin acabaria por anunciar que venderia o negócio para não prejudicar mais os envolvidos: patrocinadores, funcionários, colaboradores, subscritores.
O negócio foi vendido e o novo director assumiu, desde logo, uma postura de rejeição do passado e anunciou uma maior “democratização” dos conteúdos, dando visibilidade a projectos de transformação de automóveis e a modelos mais modestos.
Obviamente, mexer na fórmula significou a morte da galinha dos ovos de ouro e cedo se percebeu que, sem a equipa que idealizou e concretizou a Petrolicious, tudo o que viesse a seguir, seria uma desilusão.
Um investidor e os talentos do passado
Depois de quatro anos em que quase não se ouviu falar em Petrolicious, a marca regressa agora, pelas mãos do Grupo DuPont Registry, que inclui diversas áreas de negócio, como seguros, financiamento, organização de eventos como o Cavallino Classic, o Modena Cento Ore e vários outros e é ainda detentora do Ferrari Chat, que reúne milhares e proprietários e entusiastas Ferrari de todo o mundo.
Segundo a descrição dos novos proprietários, o site aumentará o foco no anúncio e venda de automóveis.
A boa notícia é que a DuPont trouxe de volta a maioria da equipa que fez da Petrolicious a marca que em tempos foi e, esta semana, surgiu o primeiro de muitos vídeos semanais. De fora terá ficado, naturalmente, Afshin que, enquanto tudo estiver fresco na memória, será sempre visto como “activo tóxico”.
A cultura de cancelamento não combina com a cultura automóvel
Poderia dizer-se que tudo está bem quando acaba bem, mas a verdade é que há sempre danos irreparáveis. Do ponto de vista económico, houve uma destruição de riqueza, perdeu-se oportunidades de trabalho para muitos e houve, sobretudo, a derrocada de um bastião que puxava pela indústria do entretenimento automóvel. Nós, entusiastas, perdemos cinco anos de vídeos fantásticos.
Não importa discutir os “tweets” de Afshin Behnia, mas importa discutir o direito que tem de dizer o que pensa, uma vez que não ofendeu particularmente ninguém. No entanto, também não é isso que está em causa. O que está em causa é que se tenha atacado um negócio que empregava pessoas com opiniões diferentes, que se tenha posto em causa o direito daquela pessoa ter e gerir um negócio meritório e que se tenha provocado a contaminação da cultura automóvel pela “ditadura dos bons costumes”.
Se há meio em que não faz sentido matar um negócio pela orientação política dos seus líderes, esse meio é o dos automóveis, em particular o dos clássicos.
Vamos lá pensar um pouco sobre as marcas e os modelos que nos apaixonam: se aplicássemos com a mesma veemência esta política de cancelamento a tudo o resto, seria possível termos este romance global com o Volkswagen Carocha? Ou esquecemo-nos que ele já se chamou KdF Wagen?
Então e esse Porsche bonitinho aí na garagem, alguma vez precisou de esconder a relação com aquele amigo do Terceiro Reich de nome Ferdinand?
E já nos esquecemos que os BMW de que tanto gostamos só existem graças ao Senhor Quandt, em tempos filiado no partido Nazi?
Teríamos a legitimidade de continuar fascinados com as “flechas de prata” ou com os Alfa Romeo pré-guerra?
E porquê continuar a celebrar o Trabant, esse produto de um regime temível, que se tornou num acarinhado ícone pop?
E os carismáticos Lada Niva? Mandamos para a prensa?
Pensemos em tudo o que teríamos perdido se tivéssemos “cancelado” marcas por causa de questões políticas. No caso do Volkswagen, teríamos perdido aquilo que se veio a tornar um dos automóveis mais democráticos de sempre e um ícone da liberdade, até mesmo associado à cultura hippie.
Muito mais é o que nos une...
A cultura automóvel é fascinante, precisamente porque, ao estudarmos os automóveis, somos obrigados a perceber os contextos políticos e sociais e a entender a sua complexidade. E aprendemos também que a genialidade dos produtos não desvanece por causa do carácter dos seus criadores.
O mesmo deve acontecer com tudo o que está associado. A comunidade internacional de entusiastas dos automóveis é especialmente valiosa pela diversidade de pessoas que reúne, independentemente de posses, nacionalidades, etnias, ou orientações políticas. Este é um meio que permite criar amizades entre pessoas que, a única coisa que têm em comum, é esta paixão. E não é pouco...
Este é um lugar onde a “política de terra queimada” não tem lugar. A “modernice” da justiça popular por guerreiros do teclado, não pode nem deve interferir num meio onde a maioria dos entusiastas entende bem que o mundo não pode ser visto a preto e branco.
Vamos ao que interessa
É tempo, então, de nos focarmos no que importa: o conteúdo. E para este seu “renascimento”, e equipa Petrolicious escolheu, de forma inteligente, uma história emotiva que tem tudo a ver com segundas oportunidades.