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Conde de Monte Real

O retrato de um grande nome do nosso automobilismo. Dos automóveis aos aviões, passando pelas motos, o exemplo de um sofisticado e competitivo "sportsman" português.
José Correia Guedes
1 de mai. de 2024

Fotos: Centro de Documentação do ACP e família Monte Real

“Também o Conde de Monte Real (Jorge de Melo e Faro), vinha até Salvaterra, usando além do carro, este pequeno aparelho, que tinha como base de aterragem o terreno da Amieira, estando logo à sua espera o empregado Rui Cordeiro, que o trazia até ao seu Palacete. O rapazio, ao vê-lo voltear pelos ares, logo gritava: ‘Olha, o avião do Conde!…..’ e numa correria, que durava uns bons minutos, lá se juntava um pequeno grupo vendo aquela novidade. Um dia o Conde, convidou alguns rapazes a dar uma volta com ele. Muitos fugiram com receio, outros a medo esperaram, e o primeiro lá foi. Cá debaixo, era bonito, maravilhoso mesmo, ver a avioneta subir e descer lá para os lados do Tejo…” – José Gameiro, História de Salvaterra

Era assim Jorge Cardoso Pereira da Silva de Melo e Faro, também conhecido como Conde de Monte Real, título outorgado em 1907 pelo Rei D. Carlos a seu pai, Artur Porto de Melo e Faro, ele próprio um grande entusiasta dos automóveis, que chegaria a ser Presidente do Automóvel Clube de Portugal. Nascido em 1916 e desde logo senhor de uma fortuna considerável que o libertava de qualquer preocupação de ordem financeira, Jorge Melo e Faro cedo começou a interessar-se por toda a espécie de veículos com motor, em especial os automóveis e aviões que marcavam a grande revolução tecnológica dos primórdios do século XX. 

Mais tarde viria também a interessar-se por barcos a motor e chegou mesmo a patrocinar a construção de uma espécie de jet-ski, um curioso artefacto marinho que fazia as delícias dos veraneantes das praias de Cascais quando a sua própria filha evoluía sobre as ondas aos comandos do estranho veículo.

Mas falemos então de aviões. Para começar diga-se que o Conde de Monte Real deixou o seu nome fortemente ligado à aviação civil portuguesa, desde logo por ter sido um dos primeiros pilotos civis a serem “brevetados” no nosso país (brevet nº 29) mas também por ter dado uma contribuição decisiva para a construção do actual Aeródromo Municipal de Cascais (Tires), outrora denominado Campo de Turismo Conde de Monte Real.

A história deste aeródromo merece ser contada. Até 1964 não existia em toda a região de Lisboa um único aeroporto destinado à aviação ligeira. O Aero Clube de Portugal formava pilotos há muitos anos mas tinha que utilizar campos de aviação improvisados ou então recorria aos serviços da Base Aérea nº 1 situada na Granja do Marquês, Sintra. Porém, sendo esta uma base de instrução da Força Aérea por vezes existiam constrangimentos que limitavam a operação dos aviões civis.

 Havia que fazer alguma coisa. Foi assim que entrou em cena o Conde de Monte Real. Apaixonado pela aviação em geral, ele próprio piloto e possuidor de aviões, decidiu utilizar todos os seus conhecimentos a nível privado e político para resolver o problema. Depois de uma busca relativamente breve encontrou um terreno de grandes dimensões na zona de Tires, Cascais, que parecia ter condições excelentes para a construção de uma pista de aviação com todas as estruturas aeronáuticas inerentes. Havia porém um problema: o terreno estava localizado numa área protegida que impedia o seu proprietário, um cidadão belga, de ali realizar qualquer espécie de construção, facto que em muito diminuía o seu valor por metro quadrado. 

Uma vez de posse de toda a informação sobre esta propriedade o Conde usou toda a sua influência junto de ministros, secretários de Estado, directores gerais, etc, de forma a que uma parte do referido terreno pudesse ser urbanizada tornando assim possível o nascimento daquilo que mais tarde viria a ser conhecido como Bairro do Conde de Monte Real. Em reconhecimento o proprietário cedeu gratuitamente o restante para a instalação do aeródromo tornando assim possível a concretização do sonho dos aviadores civis portugueses em geral e do Aero Clube de Portugal em particular, instituição de que mais tarde o Conde seria feito Presidente Honorário. Entende-se bem por quê.

De menor importância será o facto, já referido no início deste texto, de Jorge Melo e Faro ter sido um dos poucos cidadãos portugueses da época com capacidade para adquirir os seus próprio aviões e por ter mandado construir um campo de pouso na sua propriedade do Ribatejo onde passou a existir também um pequeno hangar. Foi proprietário de um Piper Cherokee 180 de turismo (CS-ALO) e de um Zlin de acrobacia (CS-ALU), o primeiro dos quais esteve presente na inauguração do aeródromo com o seu nome. Terá adquirido também um motoplanador (CS-ALI) que cedia regularmente ao Aero Clube para formação de pilotos.

Foram, no entanto, os automóveis a grande paixão da sua vida. Será no ano de 1935 que o nome de Jorge Monte Real, então com apenas 19 anos de idade, começa a surgir com regularidade no panorama do automobilismo nacional e quase sempre pelas melhores razões. De facto, não foi preciso esperar muito para se perceber que o jovem piloto de Lisboa não era apenas mais um aristocrata rico em busca de divertimento numa altura em que a esmagadora maioria dos praticantes desta nova modalidade provinha quase exclusivamente das camadas superiores da sociedade portuguesa, aristocracia ou alta burguesia. 

Este era um desporto caro, quer pelo preço dos automóveis de competição quer pelos custos elevados da preparação e manutenção dos mesmos, circunstância que provocava uma espécie de selecção natural e reduzia a um pequeno grupo de amigos a lista de inscritos nas diversas provas que então se realizavam. Mas voltemos a Jorge Monte Real, como passou a ser conhecido no meio automobilístico e não só, e à sua entrada “de rompante” no pequeno meio automobilístico nacional.

Em Junho de 1935 apresentou-se à partida para a II Rampa de Santarém com um pequeno MG inscrito em Sport e logo à primeira tentativa conquistou o segundo lugar na categoria. A "coisa" prometia. O resultado repetiu-se na Rampa do Bussaco mas logo a seguir conquistou a vitória absoluta nas rampas da Penha e do Cabo da Roca enchendo de pasmo o "establishment" nacional. Mas não era só. Em Outubro disputou o Circuito do Estoril ao volante de um Bugatti e só foi batido pelo carro idêntico de Francisco Ribeiro Ferreira, classificando-se à frente de consagrados como Manuel Soares Mendes e Henrique Lehrfeld.

Em 1936 participou no Circuito de Vila Real ao volante de um Ford inscrito em "Sport" e chegou a liderar a corrida por mais que uma vez mas acabou por desistir devido a avaria mecânica. A desforra viria pouco tempo depois no I Circuito de Santarém, prova que venceu com à vontade conduzindo  novamente o Bugatti.

Em 1937 sagrou-se vencedor do Rali às Pedras Salgadas e em 1938 participou na Prova de Estrada do ACP, evento que viria a tornar-se no embrião da futura Volta a Portugal. Venceu a primeira etapa e liderava a segunda quando o motor do Ford cedeu e o obrigou a abandonar.

Seguiram-se os anos da II Guerra Mundial que fizeram com que a prática do automobilismo ficasse congelada quase até ao final da década de 40. Mas não foram anos perdidos, longe disso. O Conde era figura importante da aristocracia portuguesa e tinha uma vida social bastante activa numa altura em que o Estoril acolhia algumas famílias reais europeias exiladas em consequência de transformações políticas ocorridas nos respectivos países. As festas realizadas no Sporting Clube de Cascais (Parada) e no Hotel Palácio durante a década de 40 rivalizavam em "glamour", pompa e circunstância com o que de melhor se fazia por essa Europa fora antes do estalar do conflito.

Terminada a guerra em 1945 foram necessários mais alguns anos até que a vida retomasse alguma normalidade, mesmo no caso dos países não directamente envolvidos como era o caso de Portugal. Foi assim que surgiu o Rallye Internacional de Lisboa (Estoril), uma prova internacional que seguia o modelo do Rallye de Monte Carlo com os concorrentes a partirem de várias cidades da Europa para depois atravessarem um continente meio destruído e finalmente  se encontrarem no Estoril onde se disputavam as provas complementares. A segunda edição desse grande evento desportivo teve lugar em 1948 e o Conde de Monte Real sagrou-se vencedor absoluto ao volante do seu magnífico Bentley 4 1/2 Litre. Registe-se aqui o facto de os concorrentes que escolheram Lisboa como ponto de partida terem na verdade partido de Cacilhas para poderem seguir para sul. É que não havia ponte…

 

Mas seria nas rampas que Jorge Monte Real viria a afirmar-se como grande piloto de velocidade utilizando para o efeito um carro especialmente concebido nas oficinas de Manuel Palma, posteriormente fundador do Team Palma que tantos sucessos conheceu pelas mãos de Ernesto Neves e outros. 

Tratava-se de um chassis Ford dos anos 30 com um motor V8 em que foi montada uma cabeça Ardun construída em alumínio que permitia obter 160 cavalos de potência em vez dos 95 originais e produzir mais torque a baixa rotação, requisito fundamental para este tipo de provas. O segredo de Zora Arkus Duntov, o seu criador, foi colocar as válvulas em cima e não de lado, como até aí acontecia, facto que resultou num acentuado aumento de performance.  

A carroçaria era também mais leve que a original o que também contribuiu para tornar este conjunto carro / piloto praticamente imbatível. E assim aconteceu de facto. O Conde viria a sagrar-se Campeão Nacional de Rampas em 1951 e 1952 tendo vencido a totalidade das provas neste último ano. E no anterior só falhou uma. Notável.

Um português no pódio de Monte Carlo e outras Histórias

Mas o seu grande momento, aquele que registaria o seu nome em letras de ouro na história do automobilismo português aconteceu no Rallye de Monte Carlo de 1951, prova em que conquistou o segundo lugar absoluto fazendo equipa com Manuel Palma ao volante de um Ford 100 Cv, feito jamais igualado por qualquer outro automobilista português. Resta acrescentar que este carro sofreu um sério acidente pelas mãos de Manuel Palma durante o Rallye de Monte Carlo de 1949 mas foi completamente recuperado para a edição de 1951 a ponto de lhe ser montado o mesmo motor  Ardun de que falámos no parágrafo anterior.

Em 1953 o Conde de Monte Real fez a sua estreia numa grande prova de velocidade internacional durante o Grande Prémio do Jubileu do ACP disputado no circuito de Monsanto, utilizando para o efeito o Ferrari 250 MM (#0288 MM) do Conde da Covilhã com o qual Vasco Sameiro sofrera um sério acidente durante o Grande Prémio do Portugal disputado alguns meses antes no circuito da Boavista. O carro foi recuperado nas oficinas de Manuel Palma e apenas ficou pronto alguns dias antes da corrida mas como o chassis ficou danificado  em consequência do acidente o Ferrari nº 22 acabou por revelar problemas de estabilidade que o tornavam "inguiável" a alta velocidade. Quando interrogado por um jornalista sobre quem seria o seu favorito para ganhar o Grande Prémio, o Conde respondeu: "O Stirling Moss, que tem um carro com travões de disco. Ainda não sei bem como isso funciona mas sei que resulta".

Como não podia deixar de ser Jorge Monte Real seria um dos primeiros proprietários dos novíssimos e revolucionários Mercedes 300 SL logo que estes começaram a ser importados para  Portugal. Para testar o novo equipamento nada melhor que bater o record da ligação Paris - Lisboa estabelecendo uma marca de 17 horas e alguns minutos para percorrer a distância. Dizia o Conde que a "coisa" tinha asas (Gullwing) e por isso "voava". 

Retirado do automobilismo em meados da década de 50 viria a regressar episodicamente em 1968 para disputar uma corrida de Veteranos na pista da Granja do Marquês. Ao volante de um  Porsche 911 que mal conhecia dominou a concorrência com grande à vontade e conquistou a última grande vitória da sua carreira.

 Como a vida não é feita apenas de automóveis e aviões o Conde de Monte Real ainda teria uma breve passagem pela política tornando-se vereador com o pelouro de Trânsito e Transportes da Câmara Municipal de Lisboa em finais da década de 60.

Faleceu em Setembro de 1992 aos 76 anos de idade. 

Com agradecimentos ao Centro de Documentação do ACP, família Monte Real, Ernesto Neves, Cte José Vilhena e Luis Sousa