Quando é que a conversão para eléctrico não é crime?
Nos últimos anos, a perspectiva da chamada “transição energética” da indústria automóvel, tem sido uma autêntica espada de Dâmocles para os entusiastas, pois a perspectiva de se ver legalmente limitada a utilização de modelos desportivos e clássicos, implicaria uma tremenda desvalorização do património. mas, sobretudo, o fim do hobby que, para muitos de nós, é o que de mais precioso temos na vida, para lá das relações humanas.
No meio de todas estas dúvidas, há sempre quem procure capitalizar o medo e fazer dele um negócio, como é o caso da electrificação de clássicos.
O argumento das restrições
O primeiro e mais usado argumento é o de poder usar os veículos apesar das restrições legais ao uso de clássicos. A questão é: quais restrições?
Na grande maioria das cidades europeias onde têm sido impostas restrições legais à circulação de automóveis que não cumpram as normas Euro, continua a haver excepções para os automóveis antigos com certificação de interesse histórico.
Nas poucas onde se chegou a planear ou a impor restrições, a FIVA, em coordenação com as federações e clubes locais, acabou sempre por conseguir manter as excepções. Excepções essas que estão automaticamente justificadas pelo Estatuto de Interesse Histórico que exige que o veículo não seja de uso diário, para que possa obter a certificação.
A facilidade de utilização
Outra das razões apontadas para a conversão é a facilidade de utilização, pois afinal, basta entrar e arrancar. Não há cá essas coisas de “puxar o ar”, deixar aquecer, acamar travões, manter rotações baixas nos primeiros minutos, etc. É só entrar e arrancar. Tudo fácil, tudo extremamente aborrecido...
Ou se gosta de automóveis, ou não se gosta. Se ao entrar para um automóvel antigo não vê encanto e prazer em entender a mecânica, em dominar a técnica que se exige para lidar com as limitações naturais da carburação ou de uma injecção “à moda antiga”, se não vê encanto nas diferenças de sonoridade de um motor a arrancar a frio, então um automóvel antigo não é para si.
Se tudo o que o motiva é a estética, não tardará a concluir que é preferível comprar um automóvel eléctrico novo do que viver com as inconveniências de conforto, práticas e de segurança de um veículo que, apesar de transformado, não deixa de ser antigo.
A poupança e a poluição
Nós, entusiastas, enquanto utilizadores de clássicos, pouco nos importa se os nossos automóveis consomem mais ou menos combustível. Isto porque se no final de um ano tivermos feito mais de 1000km com cada um, é porque foi um ano bom.
O custo de utilização de um clássico é, aliás, menos relevante do que o custo de manutenção. E, obviamente, o custo de manutenção por quilómetro sobe quanto menos usamos o automóvel.
É claro que o custo de manutenção, não é negligenciável e, seguramente, exige sacrifícios financeiros. Mas então e a conversão?
A conversão implica, à cabeça, um investimento extremamente avultado na transformação do veículo que nunca pode ser amortizada pela hipotética poupança nos quilómetros percorridos de então em diante.
Até porque mesmo que a electrificação permita um uso mais frequente, a usabilidade quotidiana de um veículo antigo no mundo real é sempre reduzida.
Ao mesmo tempo, sabe-se que o custo ambiental maior de um veículo eléctrico está na produção das baterias, sendo que só ao fim de alguns anos de uso acaba por compensar face à pegada ecológica de um automóvel de combustão.
Ora, num veículo antigo, essa pegada ecológica jamais pode ser compensada na quilometragem, principalmente se tivermos em conta que o custo ambiental do fabrico do veículo antigo já está mais do que diluído.
A performance
Há quem seja fã dos veículos eléctricos, puramente pela sua performance instantânea e capacidade de aceleração e essa pode ser uma motivação para a conversão.
Contudo, há que não esquecer que a estrutura de um veículo antigo não foi pensada para lidar com os esforços provocados pelo binário brutal de um motor eléctrico, nem com o peso das baterias. Por isso, há sempre uma grande limitação na exploração da performance, não pelos limites dinâmicos, mas também devido à segurança passiva ultrapassada.
Além disso, a legislação portuguesa obriga a que um veículo convertido não exceda a potência declarada de fábrica para a sua unidade motriz original, pelo que não é de esperar um significativo aumento da performance.
Valor patrimonial
A somar a toda a lista de inconvenientes, há que ter em conta a desvalorização do exemplar. Um automóvel clássico, mesmo de um modelo popular, tem hoje um valor considerável. A conversão corresponde a uma profunda alteração das características, pelo que impede a classificação como veículo de interesse histórico e reduz a atractividade do modelo para a grande maioria dos entusiastas.
Mesmo que seja possível encontrar um comprador, dificilmente se consegue recuperar na venda o valor investido na conversão.
Os motores são a alma de um automóvel... salvo raras excepções.
Quando pensamos na complexidade de um motor de combustão e na genialidade da sua concepção original, é impossível não nutrir algum fascínio. Além do mais, um mesmo modelo com dois motores distintos, pode ter um carácter absolutamente diferente e é isso que faz dos automóveis uma espécie de seres vivos, quase com personalidade.
É por isso que privá-los do motor é retirar-lhes a essência. Mas há excepções. Modelos em que o motor é quase uma inconveniência.
Se pensarmos objectivamente, a meta dos engenheiros da Rolls-Royce, sempre foi oferecer o máximo de binário e potência útil, fazendo com que a presença do motor praticamente passasse despercebida.
A forma como o motor era calibrado e suportado na carroçaria, a forma como o habitáculo era isolado e o uso de uma caixa automática o mais suave possível, tinham como objectivo aquilo que os motores eléctricos conseguem sem esforço. E, na verdade, ninguém compra um Rolls-Royce por causa do motor.
Ou seja, neste caso muito particular, talvez a electrificação colocasse o automóvel mais próximo do espírito dos seus criadores. Em todo o caso, seria reescrever a história, que é algo que contém em si um misto de desrespeito e de arrogância.
Há um outro automóvel clássico, mais especificamente um modelo, em que penso muitas vezes como uma espécie de alvo perfeito da electrificação. Um modelo que é avançado em quase tudo, e definitivamente anacrónico no que toca ao motor. Falo, como já terá adivinhado, do Citroën DS.
O DS, em qualquer das suas versões, tem no motor o “elemento estranho”, porque, resumidamente, foi a parte para a qual não sobrou orçamento. O projecto original passava por um boxer de seis cilindros, mas foram equacionados motores V4 a dois tempos, e V6 ou V8 a quatro tempos. No fim, os engenheiros tiveram de se contentar com o vetusto "Sainturat", herdado do Traction Avant.
Por essa razão, e porque se trata de um automóvel nada raro, não me chocaria que alguém experimentasse complementar a suavidade de rolamento com um motor também ele suave e silencioso porque, convenhamos, o prazer de condução de um DS está em tudo menos no motor.
Quando a electrificação é um crime moral
O momento mais mediático do fenómeno da electrificação aconteceu perante os olhos de milhões de pessoas. Foi um casamento e a escolha do automóvel foi quase um prenúncio de um caminho tortuoso.
Falo, claro está, do matrimónio do Príncipe Harry. Eu até sinto alguma compaixão pelo rapaz e pela sua bonita mulher, que viveram o melhor e o pior do contexto em que se casaram. No entanto, não posso perdoar-lhe o tremendo acto de hipocrisia e traição à tradição automóvel do seu país.
A monarquia, queira-se ou não, é um anacronismo. E faz sentido por isso mesmo. A sua função é transmitir valores culturais à sociedade e raramente precisa de ir no sentido contrário. Deve ajustar-se à realidade, mas nunca arrogar-se como preconizadora do futuro.
A mensagem passada pela utilização de um E-type electrificado, tem muito mais interpretações negativas do que positivas. Primeiramente, porque foi sacrificado um ícone da indústria britânica, para servir um membro da Casa Real, que tem por missão defender a cultura do seu país.
Em segundo lugar, tentar passar uma imagem de consciência ambiental quando a cerimónia terá tido uma pegada carbónica maior do que uma corrida entre dez petroleiros, é quase irónico.
Por fim, a mostrar um Jaguar, deveria ter sido o belo XJ da última geração, numa derradeira tentativa de salvar a marca do momento difícil que vive.
Aliás, se há alguma coisa com que os fãs da Jaguar se deviam ter indignado, era com isso e não com o mais recente concept car.
O “virtue signaling” e os negócios ruinosos.
A pressão social no sentido da preservação do planeta é tal, que há quem chegue a sentir peso de consciência por ter ou usar um clássico, o que é perfeitamente injustificado. Há estudos ingleses que demonstram que o uso do telemóvel pode ter um impacto maior nas emissões de carbono do que o uso esporádico de um clássico.
Esse peso de consciência é, muitas vezes, suscitado por personalidades que têm estilos de vida muito mais exuberantes e poluentes do que nós mas que, por questões de imagem, exibem um comportamento supostamente sustentável através do uso de automóveis eléctricos, mesmo que façam menos quilómetros neles do que em iates de luxo.
Há vários exemplos, mas destacou-se o de David Beckham, ao decidir investir na Lunaz, uma empresa cuja face mais visível da actividade era a conversão de clássicos, como o Aston Martin DB6, o Jaguar XK120 e 140, o Range Rover MkI, o Rolls-Royce Phantom ou os Bentley Continental S1 e S2.
A Lunaz dizia ter como objectivo “prolongar o legado dos mais belos automóveis do mundo”, mas no entretanto faliu. Gostaria de saber de que forma vai ser prolongada a vida destes automóveis que foram convertidos e que agora ficam “órfãos”.
Onde a conversão faz sentido, ninguém quer ir.
A outra área de actividade da Lunaz era a conversão de veículos pesados de trabalho, nomeadamente, veículos de recolha de resíduos. Uma ideia, essa sim, totalmente pertinente.
Esses são veículos ruidosos, com grande consumo de combustível, com rotas curtas e programadas e que, por serem volumosos e pesados, têm um custo ambiental elevado quando chegam ao fim de vida, pelo que faz sentido a conversão.
Infelizmente, a conversão talvez não seja o melhor negócio para as autarquias ou mesmo para as empresas privadas de recolha de resíduos, mas com o incentivo certo, esta poderia ser uma ideia com considerável impacto positivo.
E porque não serem convertidos automóveis a gasóleo de gerações recentes? Um BMW, um Mercedes-Benz, um Volvo e outros automóveis de marcas "premium" com 15 a 20 anos, são modelos com sistemas de segurança e conforto perfeitamente actuais, com carroçarias ainda resistentes à corrosão e que, em vez de serem abatidos poderiam começar uma nova vida, se fosse possível convertê-los a preços razoáveis.
Afinal, não aprendemos que reciclar e reutilizar eram as soluções para um mundo melhor? Como vamos cumprir metas ao incentivar a produção de novos automóveis e a destruição de outros perfeitamente utilizáveis?
Conclusão
A sustentabilidade ambiental é um assunto sério. Há muito que podemos fazer todos os dias para ajudar a salvar o planeta. No entanto, a UE prefere convencê-lo a comprar um automóvel eléctrico, do que explicar-lhe que colocar um balde debaixo da torneira da banheira enquanto espera pela água quente, deveria ser uma obrigação moral.
Se morar na cidade e um automóvel eléctrico fizer sentido para si, avance. Mas se lhe passa pela cabeça esventrar um pedaço de cultura que não faz mais de 1000km ao ano, só para convencer os outros de que é “moderno” e virtuoso, então talvez não seja um dos nossos...