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Chegou o F80. Estamos entusiasmados?

É o novo hipercarro da Ferrari. Sucede ao LaFerrari, com metade dos cilindros. É o mais potente e rápido de sempre e tem um nome maroto. Isso basta?
Hugo Reis
18 de out. de 2024

Quem quer que trabalhe nos media sabe que os hipercarros são excelentes para fazer títulos e notícias. São também importantes para a indústria, porque tal como os automóveis de competição, são autênticos laboratórios onde se põe à prova e se demonstra tecnologias de vanguarda. 

Dito isto, não são grande coisa para vender revistas, porque o comum cidadão prefere ler sobre algo a que consiga, realisticamente, aspirar. E por muitos gurus da motivação que inundem os Instagram desta vida, há um momento, ali antes dos 30 anos, em que mesmo o mais sonhador dos jovens desce à terra e percebe que é melhor apontar mais abaixo a sua mira de ambições. Há pessoas que são excepção, claro, mas esses ou são génios ou têm cadastro. 

Não há nada de errado ou de infeliz nessa “descida” à terra, porque as máquinas deste género acarretam inúmeros inconvenientes e não garantem maior prazer do que um desportivo de valor razoável, mas muito bem-nascido. 

Alguns desses inconvenientes decorrem do facto destes modelos não terem de se comprometer com problemas como consumos, fiabilidade e custos de manutenção como acontece no resto do mercado.

Mas então... porquê híbrido?
Por um lado, creio que não tardará muito a que nós, entusiastas puros, deixemos de torcer o nariz à hibridização (mas urge encontrar uma palavra melhor para isto). Modelos como o novo Carrera GTS, em que o sistema híbrido apenas existe para melhorar o binário e a resposta ao acelerador, podem contribuir para o prazer de utilização, desde que não acrescentem muito peso.

Carro, ou carro e meio?
Ora, historicamente, os automóveis deste segmento eram o mais leves possível. Se pensarmos no F40, vemos que isso foi levado ao extremo. Contudo, a busca do refinamento e da velocidade máxima, acima da agilidade, mudou um pouco o paradigma. 

Mesmo o contemporâneo Bugatti EB110, seguiu outro caminho, com quatro turbos e 1600kg de peso a seco. A Ferrari, por seu lado, permaneceu fiel à filosofia dos automóveis de corrida e conseguiu que o F50, apesar do V12, não passasse dos 1230kg. O Enzo, também V12, pesava 1365kg. Já o LaFerrari (nome mais absurdo de todos os tempos), rondava os 1500kg, mas era de esperar, quando se carrega um V12 com sistema híbrido.

Já o novíssimo F80, usa, tal como o modelo de entrada da Ferrari, um motor V6. Por isso, pesa apenas... 1525kg.

Então porquê um V6?
Sempre que há um novo automóvel deste género, ouvimos o argumento da “utilização da tecnologia da F1” e, actualmente, os F1 usam um V6, é certo. Mas só porque o regulamentos a isso obrigam. Além do mais, os hipercarros, há algum tempo que vão mais longe do que apenas espelhar a tecnologia da F1. 

Talvez a intenção seja só a ligação ao 499P, vencedor de Le Mans. Ou então, apenas a de legitimar outros modelos V6 da marca, como 296 GTB que, diga-se, não tem sido exactamente aquilo que a marca ou os fãs desejavam. É bonito, imensamente rápido e eficaz, mas registaram alguns problemas de juventude e, no mercado internacional de usados, há já uma oferta considerável com preços em quebra, ao contrário do que acontece com os F8 Tributo ou os 458, que têm o quê? Acertaram: um V8 que soa bem.

Num segmento dominado por sensações e emoções, talvez não sirva de muito argumentar que a potência é a maior de sempre, ou que é mais rápido que o anterior. Isso é um dado adquirido. Pelos vistos, mesmo quem os pode comprar, ambiciona um pouco mais.

A Ferrari até parece ter noção disso, ou não teria lançado o 12Cilindri. Então o que justifica o V6 do F80? Será apenas uma validação do V6? Ou será uma forma de empurrar os antigos clientes dos Enzo e LaFerrari para um mercado ainda mais exclusivo, o dos fantásticos e ultra-exclusivos modelos como o SP3, que recorre ao bom velho V12 e tem uma estética tão mais consensual?

E por falar em estética...
“Primeiro estranha-se e depois entranha-se” e blá, blá, blá... Todos sabemos que um design automóvel que seja capaz de resistir ao passar do tempo, normalmente choca-nos à primeira vista. 

O F80 não choca, mas também não encanta. À semelhança do F50 e do Enzo, não há valores intangíveis que alguma vez consigam distorcer-nos a vista, ao ponto de o acharmos bonito. 

Numa opinião pessoal, mas o mais objectiva possível, este é mais um desenho intrincado (ainda mais confuso que o do SF90 XX Stradale), em que as linhas redondas não arranjam forma de se entender com as arestas. Os relevos sobre as rodas são suaves como num 250LM (tal como o 296 GTB), o nariz tem a faixa transversal ao estilo Daytona (tal como o 12Cilindri), mas a secção dianteira pisca o olho ao protótipo 499P, com uma volumetria brutalista no fim dos guarda-lamas, como se no perfil convivessem dois modelos distintos. Não parece haver uma coerência entre tudo. Já nem falo das jantes bicolor ao estilo Porsche Taycan...

O ponto mais favorável, talvez seja mesmo o habitáculo. 

Se os outros conseguem...
Ferrari, é Ferrari. O apelo é inabalável e a qualidade está hoje ao nível do que se exige de uma marca tão exclusiva, mas não será que se faz produtos deste género mais engraçados noutras casas?

Os exemplos são um pouco óbvios, mas é impossível passar ao lado do que a Gordon Murray Automotive fez, com o incrível motor Cosworth V12 que faz 11.000rpm, num conjunto que pesa 987kg. Ou, noutro patamar, o Bugatti Tourbillon com um incrível V16 que atinge as 9500rpm.

Não será que estes modelos tornam o novo Ferrari um pouco previsível e redundante?

Em Maranello, tudo se vende.
Alegadamente, todos os 799 exemplares estão já vendidos, por um contundente preço de três milhões de euros. Nada mau para os accionistas...

Eu acho que se Maranello oferecesse garrafas de 33cl água da torneira com um “cavallino” no rótulo por 500€ cada, havia de haver quem açambarcasse caixas delas, como se de um tesouro se tratasse, e talvez as vendesse ainda mais caras. 

É um efeito que resulta da paixão, mas também da esperança de um bom investimento. Haverá 799 entusiastas apaixonados ao ponto de pagar três milhões por um automóvel que ainda não conduziram e de que nem sabem bem se gostam? Ou será que há só 50 entusiastas, a que se soma 749 investidores, que nem sabem bem quantos cilindros o modelo tem e que nunca os vão guiar?

Essa estratégia tem resultado, e permite à Ferrari manter-se orgulhosamente independente. Mas se a marca passar a vender lucros em vez de sonhos, será que a mística sobrevive no longo prazo? Não era suposto que uma máquina deste segmento fizesse ferver o sangue ao mais humilde dos entusiastas? É que ao longo deste dia não senti que alguém estivesse especialmente  entusiasmado com um modelo cujo género só se repetiu cinco vezes no nosso tempo de vida. A não ser talvez o Schmee150, mas esse até se empolga com um iogurte natural ao pequeno-almoço.

E daqui a dez anos?
Infelizmente, pela lógica da marca, teremos de esperar mais dez anos até vermos um sucessor deste modelo. Será que vai acontecer? Ou será que, como o CEO admite, o futuro da Ferrari pode ser totalmente eléctrico? Se fosse eu a sugerir isso, seria insultado pelos leitores. 

O que é facto, é que o CEO da Ferrari não se incomoda com essa perspectiva pois, afinal, é um executivo oriundo do mundo da tecnologia e não do sector automóvel. Não sei se vem daí algum mal mas... dá que pensar.

F80, é um bom nome, que pretende uma colagem descarada ao supercarro mais venerado de todos os tempos. O nome talvez merecesse mais. Talvez Enzo nem o aprovasse... 

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