Parem de servir champanhe nos leilões!
Há uma razão para gostarmos de automóveis antigos e especiais e essa razão é a história. Todos gostamos de uma boa história, seja a do desenvolvimento de um modelo, seja a história de um exemplar em particular.
Por isso mesmo, os famigerados “barn-find”, contém um fascínio próprio, pela improbabilidade, pela semelhança às histórias de descobertas de tesouros que líamos na infância. Mesmo que, na grande maioria das vezes, não são “barn-finds”, pois, para além de não estarem em barracões, não foram descobertos, mas sim revelados.
É precisamente esse o caso da “Junkyard Collection”, forma como a RM Sotheby’s decidiu apelidar a venda da colecção que Rudi Klein acumulou durante décadas de trabalho como “sucateiro” de modelos exóticos europeus em Los Angeles.
A história de como a colecção se formou é fascinante, assim como o facto de se ter mantido intocada durante tanto tempo. Contudo, os principais resultados anunciados pela leiloeira, paracem absolutamente desligados da realidade.
Um ano pouco favorável
Note-se que este leilão acontece num contexto de mercado que não deixava adivinhar “milagres”. Desde o início do ano, tem-se registado uma estagnação do mercado, com alguns segmentos a perderem mesmo valor.
Perdem valor, em particular, os modelos tradicionalmente mais valiosos, ou seja, automóveis desportivos dos anos 50 e 60, que sofrem com uma atitude mais defensiva dos maiores coleccionadores e, simultaneamente, com um crescimento do interesse em modelos dos anos 80 até à primeira década do século XXI.
O número de automóveis altamente desejáveis que ficam por vender em cada leilão, alguns quase se licitações, é um sintoma de falta de confiança por parte dos coleccionadores.
Escusado será dizer que, 2024, não tem sido um ano de recordes.
Atmosfera inebriante
A RM Sotheby’s realizou o leilão no próprio espaço da “Porche Foreign Auto”, proporcionando uma oportunidade única de visitar o espaço, tal como foi deixado após a morte do empresário.
Entre o muito pó, reconhecem-se formas de automóveis fascinantes - ou parte deles – amontadas em prateleiras. Há um ambiente de organizada decadência que é surreal. A singularidade do momento, faz os potenciais compradores entenderem esta como uma oportunidade especial.
Claro está que, no meio de toda a atmosfera algo apocalíptica, uma leiloeira faz o que lhe compete, que é acolher bem os licitadores, dar-lhes conforto, alguma comida e, claro está, alguma bebida.
A piada do “champanhe” é recorrente no meio, pois é comum servi-lo com abundância nos leilões, mas não foi necessariamente o caso, ou, pelo menos, não explica totalmente os resultados.
A gaivota que voou mais alto
De todos os lotes em oferta, aquele que atingiu o valor mais alto, foi o Mercedes-Benz 300 SL Gullwing de alumínio, vendido por 8,7 milhões de euros, superando a estimativa máxima em mais de 50%. O valor é o mais elevado alguma vez pago por um 300 SL “Lighweight” ou, para ser mais exacto, “Leichtmetallausführung”...
Forma produzidos cerca de 1400 “Gullwing”, mas apenas 29 foram produzidos em alumínio. O objectivo era a redução de peso (um calcanhar de Aquiles do modelo) para ser mais eficaz em competição.
Este exemplar, no entanto, é um dos poucos sem historial de competição. No entanto, o seu percurso é igualmente relevante. Isto porque o seu comprador foi, nem mais, nem menos, do que Luigi Chinetti.
Chinetti, depois de uma carreira como piloto, deixou Itália para se radicar nos Estados Unidos, onde se viria a tornar o mais importante agente Ferrari de todo o mundo, com as suas vendas de automóveis de estrada a alavancar o crescimento da marca.
Porque além de ser a sua paixão, era também bom para o negócio, Chinetti criou a N.A.R.T. - North American Racing Team, que competiu, com automóveis Ferrari, num formato semi-oficial.
Alegadamente, Chinetti terá adquirido o Gullwing para ter um termo de comparação para com os automóveis Ferrari. Vinte anos mais tarde, conheceu Rudi Klein nos bastidores das 24 Horas de Daytona e, logo ali, ficou fechado o negócio do Gullwing, que se manteve na família Klein até agora.
Curiosamente, exte exemplar era originalmente preto mas, de resto, mantém-se fiel à especificação original. Ainda assim, e mesmo tendo em conta origem tão especial, é surpreendente o valor atingido, especialmente se pensarmos que agora começará um longo processo de restauro que atingirá, seguramente, largas centenas de milhar de euros...
A excepção de um leilão louco?
Talvez o automóvel mais especial do leilão fosse, na realidade, outro Mercedes-Benz, o 500K Special Coupé. Não só é um dos modelos mais desejáveis da história da marca, como é uma versão única no mundo, feita pelo carroçador Sindelfingen para o mítico piloto Rudolf Caracciola. Além de ser coupé, este exemplar tinha mais espaço em altura do que o normal 500K, para albergar a estatura do lendário piloto dos "Flechas de Prata". Este era o seu transporte pessoal nas deslocações para as provas.
Através de um concessionário de Paris, o carro acabou nas mãos do genro do ditador italiano Benito Mussolini, durante a Segunda Guerra Mundial e, após a sua execução, ficou escondido durante um longo período numa pilha de estrume na Etiópia, antes de chegar aos EUA.
Foi visto publicamente pela última vez quando levado a um salão automóvel por Klein em 1980, e tem permanecido em segredo desde então.
A Car & Classic fez um artigo acerca desde exemplar há alguns anos e estimou que o seu valor ascendesse aos dez milhões de dólares, contudo, foi vendido por 3,8 milhões de euros.
Outros exemplos de euforia.
Não passou despercebida a venda de um outro 300 SL, neste caso um Roadster, em estado bastante decadente. Originalmente vendido em vermelho, mudou também para o tradicional cinzento, algures na sua curta vida activa.
De resto, mantém-se razoavelmente original: o motor bate certo com a carroçaria, mas a caixa foi mudada em algum momento. A particularidade mais interessante, no entanto, mantém-se: a montagem de rodas Rudge de “knock-off”, que eram as usadas nos exemplares especificados para competir.
Apenas 30 Roadster saíram de fábrica com esta opção. Ainda assim, é difícil justificar os quase 1,1 milhões de euros, sendo que essa é a cotação média de um exemplar em excelente condição.
Outro caso excepcional foi o do Ferrari 365 GTC/4 acidentado, sem as jantes e capot originais, que ascendeu aos 98 mil euros, um valor que é mais de 50% da cotação de um exemplar devidamente restaurado.
Mais surpreendente ainda foi o caso do Lamborghini Miura P400 com uma história pouco clara, apesar de completo, que foi vendido pela soma algo exorbitante de 1,2 milhões de euros, uma vez mais, um valor que permite comprar um exemplar pronto a usar...
A excepção que confirma a regra.
Num cenário tão morno como o do mercado de 2024, a “Junkyard Collection” foi um verdadeiro oásis, com a totalidade dos lotes a serem vendidos, quase todos acima da estimativa. Na globalidade, a estimativa da leiloeira perspectivava 16 milhões de euros de vendas, e o resultado ultrapassou os 27 milhões...
Um verdadeiro fenómeno, que vem provar o efeito contagiante de uma boa história, quando bem contada. Foi por isso mesmo que criámos a Motorbest: pelo prazer de contar e de criar histórias, incentivando os entusiastas a sonhar e os negócios a acontecer.