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Estoril e o ruído. Era de esperar…

Uma providência cautelar pode obrigar o Circuito do Estoril a parar com todos os dias de teste, track-days e provas não-oficiais, caso não cumpra a lei do ruído. Mas porquê agora e como é que esta ameaça nunca surgiu antes?
Hugo Reis
15 de set. de 2023

Fotos: Gonçalo Reis Bispo e Rui Reis
 

O autódromo do Estoril vai ter de parar de fazer provas não oficiais caso não cumpra a lei do ruído. O tribunal concordou com um grupo de moradores que interpôs uma providência cautelar, alegando que o barulho é “insuportável” para quem vive e trabalha nos arredores do circuito.

E agora? O que vai ser do no nosso Autódromo? O que muda e o que pode acontecer e porquê?

O QUE É QUE ESTÁ A ACONTECER NO ESTORIL?

Todos temos mais ou menos noção do número de eventos de competição que acontecem no histórico circuito. Menos conhecida é a preenchida agenda de sessões de testes, eventos corporativos, apresentações à imprensa e track-days privados que ocorrem ao longo da semana.

A crescente intensidade desta agenda é uma realidade mais recente, resultante de uma cada vez mais eficaz promoção do circuito além-fronteiras e, sobretudo de uma crescente popularidade do país, mas não só…

EM PORTUGAL VALE TUDO?

É um facto conhecido pelos entusiastas, empresas e equipas de toda a Europa, que os circuitos de Portugal são dos poucos onde não existe um controlo do ruído.

A própria Motorbest já recebeu solicitações de grupos estrangeiros de coleccionadores com quem mantem contacto, solicitando ajuda na organização de eventos privados com automóveis históricos de competição, no Estoril e em Portimão, com uma única condição: não haver limites de ruído.

Apesar do custo de deslocar automóveis para o sul da Europa, os proprietários preferem, não só porque querem evitar castrar a performance com silenciadores, mas porque desejam ouvir o motor em toda a sua glória.

COMO É LÁ FORA?

Especialmente no Reino Unido, onde se realiza mais track-days do que em, provavelmente, qualquer outro país Europeu, as normas de ruído são sobejamente conhecidas e cuidadosamente controladas pelos circuitos, que não querem perder as suas licenças.

O limite mais comum é de 105dB, sendo que em alguns circuitos é bem mais baixo, como Castle Combe com 100dB e Thruxton com 98dB. Estes valores para uma medição feita com o veículo estático a ¾ do limite de rotação. Existem em alguns casos pontos de medição do veículo em movimento ao longo do traçado, a partir dos quais se mede o ruído médio ao longo de 30 minutos, comparando com um limite estabelecido.

O limite de cada circuito varia consoante a densidade habitacional circundante mas, sobretudo, em função de valores negociados entre a entidade detentora do circuito e os representantes dos moradores, que pode, ou não, ser a autarquia.

EXCEPÇÕES PERMITIDAS

Usando o exemplo de Donington, podemos analisar as excepções existentes, que permitem que se realizem eventos em condições especiais.

Neste circuito, que se situa em Derby, bem no centro de Inglaterra e poucos quilómetros a norte de Leicester, são permitidos 60 dias de corridas por ano, sempre entre as 9 e as 20 horas, divididos da seguinte forma:

– 20 dias sem limite de ruídos
– 20 dias com um limite de 118dB
– 20 dias com um limite de 108dB

São ainda permitidos dois dias de testes por semana (fins-de-semana ou feriados estão excluídos) das 9 até às 17 horas, ou até ao anoitecer, consoante o que acontecer primeiro.

Ao longos dos 365 dias do ano, é permitido o uso da pista a um limite de 98dB, medidos em movimento. São raros os modelos com homologação para uso em estrada que poderão exceder este limite, nomeadamente alguns supercarros ou modelos específicos de construtores de desportivos de alta performance como os Caterham, entre outros.

Assim, automóveis não modificados, facilmente cumprirão os limites em torno dos 100dB e mesmo vários dos automóveis usados actualmente em competições de âmbito nacional, conseguem ser utilizados sem exceder o que as leis exigem.  

O QUE EXIGEM OS MORADORES DA ZONA DO ESTORIL?

Segundo a presidente da associação Moradores Baixo Ruído, o que está em causa não é o facto de se ultrapassar os limites definidos por lei, mas antes a frequência com que tal acontece. Leonor Machado admitiu em declarações ao Expresso que “O autódromo é um sítio para fazer barulho, ninguém tem dúvidas disso”, acrescentando: “mas há níveis e níveis de barulho e esses têm de ser respeitados. Se ultrapassarmos esses níveis não podemos ultrapassá-los constantemente.”   

“Da Fórmula 1 tenho saudades”, admitiu à Lusa a porta-voz da ABR, Leonor Machado, assegurando que “as provas oficiais não incomodam tanto” como outras de eventos privados, que “têm agravado o nível de ruído” na zona. “O ACP [Automóvel Clube de Portugal] tem feito provas aqui, que não provocam muito ruído, e são importantes para o comércio e o turismo”, afirmou a moradora, como exemplo, acrescentando que o problema reside em eventos com carros sem limitação de ruído “o dia inteiro”.

Além de um controlo por medição do ruído, os moradores exigem a instalação de barreiras acústicas, algo comum nos limites dos circuitos.

 

QUEM CHEGOU PRIMEIRO?

O Autódromo do Estoril foi inaugurado em 1972. A iniciativa foi de Fernanda Pires da Silva, fundadora e presidente do Grupo Grão Pará, que construiu a infraestrutura com capitais próprios.

O terreno, que até à data era uma pedreira, foi comprado ao famoso empresário Tomé Feteira e tinha como vantagem o facto de dispor de bons acessos, e de estar isolado, praticamente sem habitações ou serviços nas imediações.

Durante anos, à parte da proximidade ao mar, o Autódromo era o único factor de atracção turística e de investimento da zona de Alcabideche. Ao longo do tempo, a expansão de Lisboa e o aumento da população, motivaram uma crescente pressão urbanística na região.

Assim, a maioria dos habitantes que hoje demonstram indignação, chegaram bem depois da inauguração do circuito e mesmo depois deste ter atingido o seu auge de popularidade internacional, no início dos anos 80, quando começou a acolher o Mundial de F1.

Até mesmo o Estado e as autarquias optaram por fazer de conta que o circuito não existia, localizando junto deste creches e centros de convívio da terceira idade. Só não foi construído um hospital na curva do tanque, porque a saúde está longe de ser uma prioridade nacional.

SÃO SÓ OS MORADORES A MOVIMENTAR-SE?

É um segredo mal guardado o interesse dos promotores imobiliários pelos terrenos do histórico circuito. Aliás, foi essa a motivação da Câmara Municipal de Cascais, quando tentou adquirir a estrutura e a empresa CE – Circuito do Estoril, S.A. à Parpública.

Além de um plano para dinamizar e rejuvenescer o Circuito, a autarquia pretendia proteger este activo turístico e económico dos interesses imobiliários.

A intenção da Autarquia era somente a aquisição dos terrenos e da estrutura, mas o Estado impôs a compra da empresa e seu património, como forma de evitar os custos de dissolução da mesma.

Depois de estabelecidas as condições do negócio, o Tribunal de Contas inviabilizou a compra. O acórdão refere que a infraestrutura, detida pela holding de capitais públicos Parpública, “desenvolve actividades com o intuito exclusivamente comercial” e que a compra pela edilidade não terá “salvaguardado os interesses da população” do concelho. A autarquia não desistiu de encontrar uma solução, mas sem isso, a vulnerabilidade do circuito continua a ser real.

Os interesses privados serão mais do que muitos, com grupos poderosos em busca de uma oportunidade, aos quais que se junta uma movimentação social alegadamente espontânea, motivada por uma febre ecológica que se materializa num ataque ao automóvel. Movimentação essa que, por certo, se regozijaria com o encerramento definitivo do Autódromo.

Especulando um pouco, não será alheio a tudo isso o facto da associação Moradores Baixo Ruído ser representada por um dos mais reputados advogados do país, Ricardo Sá Fernandes.

 

AUTÓDROMO DO ESTORIL, UM PATRIMÓNIO E UM ACTIVO.

Portugal tem, actualmente, apenas dois circuitos permanentes dedicados ao automobilismo (além de praticamente inactivo, o Vasco Sameiro está a um passo da extinção, também ele refém de interesses e lutas que não dignificam, nem defendem o automobilismo). Beneficiando de todos os factores de atractividade de Portugal, como o clima, os circuitos do Estoril e Portimão têm uma ocupação quase constante.

As marcas escolhem o nosso país recorrentemente, sobretudo no Inverno, para as suas apresentações internacionais, mas também para os testes de desenvolvimento, o que implica deslocar para Portugal equipas enormes de profissionais qualificados e batalhões de jornalistas.

A isto há que somar o significado histórico de uma estrutura que transformou e catapultou o desporto automóvel em Portugal e que foi palco de momentos fundamentais da história mundial do automobilismo, como é o caso da primeira vitória de Ayrton Senna, em 1985.

E AGORA?

A Parpública comunicou à imprensa que iria apreciar o acórdão antes de se pronunciar. Por agora, é de esperar que se faça cumprir o estabelecido na lei, medindo o ruído e instalando as referidas barreiras acústicas.

Depois disso, é de esperar que o nosso querido Autódromo fique a salvo por uns tempos, mas não é de acreditar que tudo fique por aqui.

Caso o Circuito do Estoril fosse uma empresa privada, talvez pudéssemos estar mais descansados, acreditando que de tudo faria para defender com tenacidade os seus interesses. Mas quando tal entidade é detida pelo Estado e apreciando a forma como os organismos públicos se têm comportado ao longo dos últimos anos, servindo despudoradamente os interesses de grupos próximos ao poder político, a única coisa de que podemos estar certos é de que o perigo ronda.

É preciso, por isso, ser vocal na defesa dos interesses do automobilismo e do Autódromo. Saber sublinhar, com argumentos válidos, em cada conversa, em cada post nas redes sociais, o que está em causa. Usando argumentos sérios, razoáveis bem sustentados (e ilustrados com as imagens certas…) para que se perceba o que está em causa e a hipocrisia subjacente à cronologia dos acontecimentos.

É missão de cada entusiasta a defesa do valor social, cultural e económico, directo e indirecto, que depende da existência deste bonito traçado, perto da nossa capital. Sobretudo se pensarmos que, no actual contexto económico e político de Portugal, é altamente improvável que volte a ser construído outro circuito de dimensão e importância internacional.