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O Ferrari de 1,8 milhões e a vassoura com 50 anos

Mais de um mês depois da Monterey Car Week, ainda gera polémica a venda mais peculiar de todo o evento, que levanta questões sobre o que vale mais: um automóvel, ou a sua história?

Em 2022 foi estabelecido o record mundial do valor de venda de um automóvel: o Mercedes-Benz 300 SLR “Uhlenault”, foi arrematado pela simpática soma de 135 milhões de euros. Um valor que supera o dobro do record anterior, que pertencia a um Ferrari 250 GTO, que havia sido vendido por 45 milhões de euros. Contudo, cerca de um ano depois, em venda particular, um outro 250 GTO superou os 70 milhões.

Mesmo para quem vive o mundo dos automóveis clássicos por dentro, por vezes é difícil conceber que se pague tais valores. Para um leigo, chega a ser chocante! “É só um carro!”, dizem os desapaixonados.

NÃO É SÓ UM CARRO

Para a maioria de nós, é evidente que o que nos atrai num clássico nunca é só o objecto. Há sempre uma história. Se a história for pessoal, o automóvel atinge um valor que praticamente não é mensurável (sendo certo que todos temos um preço a partir do qual cedemos). Se a história for a do modelo em si, do seu desenvolvimento, etc, então estará já reflectida na cotação média da versão em causa. É também possível que um exemplar de um modelo perfeitamente banal tenha uma história particular que o torne difícil de valorizar, como por exemplo, a presença num momento histórico ou um ex-proprietário célebre.

No caso dos automóveis produzidos para competição, cujas unidades se consegue conhecer na totalidade, a raridade e exotismo são o suficiente para atingir um significado e um valor de destaque. Mas se de entre esses escassos exemplares, houve um com um “currículo” especial, então os valores tomam proporções exuberantes.

Resumidamente, muito para lá do valor intrínseco, o coleccionador valoriza sempre o facto do automóvel que adquire ser um elo que o liga ao passado, concretamente a um momento e a um contexto que pode ser épico, como uma edição das 24 Horas de Le Mans, as Mille Miglia, ou o Targa Florio.

 

E QUANDO SÓ SOBRA A HISTÓRIA?

Quem siga com atenção o mercado dos automóveis históricos de competição, sabe que há quem faça tudo por “comprar” uma boa história, pelo que não são raros os casos de modelos outrora desaparecidos, que renascem como uma Fénix, e aparecem com o seu número de chassis original, um brilho resplandecente e a decoração que lhes deu fama. Muitas das vezes, tudo o que sobra de original é o registo… e não haveria mal nisso, se tal fosse assumido e feito “comme il faut”, mas raramente é o caso e, na maioria das vezes, a lebre tem carroçaria de gato.

Histórias como essa deram azo a inúmeras polémicas e um sem-fim de processos judiciais, porque da tentação ao crime, vai um passo tão grande quanto os escrúpulos de quem se vê perante a oportunidade.

O FÓSSIL AUTOMÓVEL

Enredo bastante diferente, mas polémico na mesma medida, é o do caso amplamente noticiado no mês passado.

Durante a fantástica Monterey Car Week, aconteceu o habitual leilão da Sotheby’s. Num ano de resultados “mornos”, a sensação foi a venda de um Ferrari 500 Mondial Pinin Farina (ou que resta dele) por 1,8 milhões de euros.

Este seria um preço “de oportunidade”, para um modelo do qual foram produzidas apenas 12 unidades, todas elas ligeiramente diferentes. Mais ainda se tivermos em conta, que este exemplar em concreto participou, quando novo, em provas como as Mille Miglia e Targa Florio, entre outras.

Depois, o Mondial “emigrou” para os EUA, onde viu o belo motor Lampredi ser retirado e abandonado a favor de um V8 americano, claro está. E como uma desgraça nunca vem só, algures nos anos 60, sofreu um violento acidente em que se incendiou, ficando totalmente destruído.

E foi nessa condição que, quase 60 anos mais tarde, foi apresentado a leilão, acompanhado pela transmissão original e por um motor Lampredi de três litros, originário de outro Ferrari (o original era de dois litros).

A imagem do “destroço” é dolorosa, mas apesar do aspecto lastimável, o Mondial superou a estimativa mais alta.

Uma venda deste género levanta sempre as normais questões acerca da legitimidade histórica de um automóvel reconstruído a partir de quase nada. Obviamente, a Ferrari impõe a reconstrução através do seu polo histórico se o novo proprietário quiser ver o automóvel reconhecido como um Ferrari genuíno, mas o certo é que será sempre um automóvel feito do zero.

Então o que pagam os 1,8 milhões? Um bilhete de entrada num universo estratosférico de coleccionadores? Um número de chassis?

Será que é um disparate restaurar um automóvel assim e considerá-lo legítimo?

OS AUTOMÓVEIS DE COMPETIÇÃO E A VASSOURA COM 50 ANOS

O que um coleccionador normalmente mais deseja, é originalidade. Quanto mais um automóvel preserva dos seus componentes originais, mais apetecível é. Mas quando se fala de automóveis de competição, a perspectiva tem forçosamente de mudar, pois a construção de um bom palmarés não é compatível com o tradicional conceito de originalidade.

À excepção dos exemplares de fábrica ou semi-oficiais que, após uma importante vitória são guardados tal como terminaram a prova, o normal é que um automóvel de competição tenha somado peças e mais peças de substituição. O motor dificilmente será o original e, por vezes, nem a carroçaria é.

A este propósito, cita-se normalmente a anedota do velho varredor e da sua vassoura, quando em conversa alguém comenta: “O senhor já é varredor há 50 anos? Impressionante. Imagino a quantidade de vassouras que lá lhe passaram pelas mãos!” Ao que o homem, já curvado, responde: “Não, por acaso é a mesma desde que comecei nesta vida.” Incrédulo, o curioso interlocutor pergunta: “A mesma? Não é possível…!” ao que o varredor responde: “É a mesma, sim: só troquei 80 vezes a escova e 30 vezes o cabo…”

 

EUTANÁSIA OU CLONE? A DECISÃO ÓBVIA

Na impossibilidade de preservar os componentes originais, o que resta da maioria dos automóveis de competição, tal como da vassoura, é o rasto histórico. No caso do Ferrari 500 Mondial agora leiloado, há pelo menos vestígios originais, que serão quase como a semente para fazer nascer um automóvel com raízes no passado. É o “material genético” que vai permitir legitimar um automóvel que, na prática, será novo em folha. Um clone do original, feito a partir de um par de células, quase como os dinossauros do Jurassic Park.

É certo que não terá o mesmo encanto de outros chassis com historial mais “limpo” mas, por outro lado, haverá alguém que achasse melhor deixar desaparecer um tão raro exemplar, quando há quem esteja disposto a pagar por ele e a devolvê-lo à vida?

Para quem não souber a história, será um exemplar tão fascinante como qualquer outro. Para os conhecedores, será sempre um exemplar fácil de distinguir, que não rivaliza com o valor dos seus pares.

No fim, o importante é saber que mais um clássico exótico embelezará eventos por esse mundo fora, e celebrar o facto deste hobby ser tão relevante e tão assente na história, que haja sempre alguém disposto a investir impelido por essa componente imaterial.