O BMW Art Car português: a história e a primeira vitória
Fotos: Emidio Copeto, Pedro Carvalho, @damotorshot, Nuno Organista, BMW, Ultimatecarpage.com e 24h-lemans.com
Na Motorbest acreditamos que os bons automóveis são arte. Infelizmente, a sociedade vê muitas vezes a paixão pelo automóvel como algo fútil, mas o design automóvel, pela exigência técnica e pela intrínseca ligação ao contexto cultural e social de cada época, poderia e deveria ser apreciado com a mesma reverência do que, por exemplo, a arquitectura.
No entanto, apesar desta “marginalização”, não são raros os momentos em que as artes plásticas e os automóveis se encontram para gerar algo de extraordinário. Os BMW Art Car são o mais famoso dos exemplos.
Artistas brilhantes, automóveis excepcionais
Actualmente são já 20 os BMW Art Car oficiais, com o mais recente a ser o BMW M Hybrid V8 de 2024 - o Hypercar que disputará este ano as 24H de Le Mans, entre outras provas de relevo - decorado com a arte da pintora americana Julie Mehretu.
Contudo, um dos exemplares mais conhecidos e celebrados, é aquele que iniciou a saga dos Art Car: o BMW 3.0 CSL de Grupo 5 decorado pelo escultor “fauvista” Alexander Calder, a pedido de Hervé Poulain. Este “gentleman driver” francês estava profissionalmente ligado às artes, sendo um leiloeiro e um profundo conhecedor do meio artístico. Poulain foi fundador e é actualmente “chairman honorário” da Artcurial, que além de ser especializada em arte, acabaria por se tornar numa das principais leiloeiras de automóveis coleccionáveis.
Apesar do brilhante percurso profissional, para muitos será especialmente recordado por ter sido pai dos Art Car, quando em 1975 abordou a BMW com essa ideia: Poulain convenceria o seu amigo Alexander Calder a pintar o BMW 3.0 CSL de Grupo 2 e, em troca, receberia assistência da equipa oficial.
Jochen Neerpasch, líder da BMW Motorsport, arriscou e aceitou a proposta, convencido de que o mediatismo da ideia traria bastantes dividendos, mas nem ele poderia imaginar a repercussão da sua decisão.
Poulain viria a alinhar nas 24H de Le Mans de 1975, dividindo o CSL com os mais experientes Jean Guichet e Sam Posey. Não foi a performance na prova que ficou para a história, já que a equipa desistiu cedo com problemas de transmissão mas, felizmente, o CSL #2275992 não voltaria a competir, mantendo-se intacto até aos dias de hoje.
A ideia e processo de criação do Art Car foi que se tornou marcante. Alexander Calder era fundamentalmente um escultor, que se destacou pelas elegantes esculturas cinéticas, com formas essencialmente orgânicas e cores vibrantes.
A arte de Calder inseria-se na corrente “fauvista”, cuja origem é atribuída maioritariamente a Henri Matisse. Um estilo marcado pela cor, usada sempre em forte contraste, sem gradações ou critérios particulares para as combinações. “Fauve” é uma expressão que se traduz por “fera” e, efectivamente o estilo era considerado pelos críticos como “feroz”, pela forma como a cor era usada. Uma ferocidade que combinava na perfeição com as formas agressivas do CSL.
Calder viria a morrer um ano depois, mas Poulain voltaria a criar outros BMW Art Car com outros artistas destacados. Logo em 1976, voltou à carga com o trabalho de outro entusiasta dos automóveis, o americano Frank Stella, uma vez mais usando o CSL como “tela”, mas desta feita um mais exuberante Grupo 5, sobrealimentado.
Stella era um modernista, com um traço fundamentalmente minimalista e por isso inspirou-se no papel milimétrico para criar a “teia” que cobre as formas radicais.
Poulain, desta vez, estava integrado na equipa de fábrica, mas apenas como piloto de reserva e, a dividir os comandos do brutal BMW de 750cv estiveram Brian Redman e Peter Gregg, que desistiram à quinta hora com uma fuga de óleo.
No ano seguinte, Poulain regressava aos comandos do mais moderno BMW 320i de Grupo 5, desta feita decorado pelo maior artista Pop de sempre, Roy Lichtenstein. Nesse ano, Poulain já não estava integrado na equipa oficial, mas Jochen Neerpasch forneceu o máximo de apoio possível, incluindo uma equipa de assistência de fábrica. Fazendo dupla com Marcel Mignot, Hervé Poulain conseguiria desta feita o nono lugar da geral e segundo da categoria IMSA GT.
Após um ano de ausência, o francês regressaria a Le Mans em 1979 e, desta feita, com aquele que será o mais apreciado e valioso de todos os art car: o BMW M1 pintado pelo mediático Andy Warhol. Também ele um artista da corrente Pop, executou este trabalho no seu estilo habitual mas, ao contrário do que aconteceu com os antecessores - que pintaram uma maquete e deixaram que outros executassem o trabalho final - Warhol preferiu pintar directamente a carroçaria, trabalho que completou em apenas 28 minutos!
Nesta prova, Hervé Poulain voltou a fazer equipa com Marcel Mignot, mas agora na companhia de Manfred Winkelhock. O trio do M1 conseguiu um notável sexto lugar da geral e segundo dos IMSA GTX.
Poulain e os seus outros Art Car
Depois do célebre M1 e até 1989, os vários BMW Art Car criados não seriam automóveis de competição.
Após a prova de 1979, Poulain não mais competiria com a BMW, mas isso não significaria o fim dos Art Car em competição: em 1994 fez várias provas com um Venturi LM600 cuja pintura foi elaborada pelo artista Arman, e que embora sugerisse o desenho de um telhado, o padrão assemelhava-se a escamas, o que valeu ao modelo a alcunha de “réptil”.
Em 1995, Poulain alinhou em Le Mans com Jean-Luc Maury-Laribière e Marc Sourd, aos comandos de um McLaren F1 GTR decorado pelo escultor César, logrando um respeitável 13º lugar da geral.
O ano de 1998, marcou a despedida de Poulain da competição automóvel e, claro está, fê-lo em grande estilo com um Porsche 993 GT2 decorado por Wolinski - o famoso e ousado ilustrador que viria a morrer no bárbaro ataque ao jornal Charlie Hebdo em 2015.
Poulain fez equipa com Jean-Luc Maury-Laribièra e Éric Graham e terminou no quinto lugar da categoria LM GT2, mesmo à frente do Viper tripulado por Ni Amorim, Gonçalo Gomes e Manuel Mello-Breyner.
Art Cars em português
O M3 E30 2.5 que Luís Liberal estreou no Estoril este fim-de-semana, é o primeiro Art Car português usado em competição, mas em 1997, a Baviera, do Grupo Salvador Caetano, lançou um concurso a que chamou Prémio Art Car BMW Baviera. Foram vários os artistas que se candidataram, e o Museu Caetano Baviera mantém expostas maquetes de algumas das propostas submetidas.
O vencedor seria o artista açoriano Carlos Carreiro, reconhecido pelo seu estilo singular, dominado pela fantasia e o humor. A pintura foi aplicada num BMW M3 E36 ex-troféu, já depois do automóvel ter deixado de competir, e permanece assim no museu Caetano Baviera em Vila Nova da Gaia.
Luís Liberal e o seu M3
Luís Liberal é um dos rápidos “gentleman driver” nacionais, tendo feito um percurso com assinalável sucesso em diferentes categorias, com especial foco nos clássicos. No Grupo 1 competiu com os VW Golf GTI, tendo transitado para um Ford Escort RS 2000 que continua a usar em provas do nacional de clássicos.
Contudo, nos seus sonhos vivia a ideia de pilotar um BMW M3 E30 como aqueles que viu correr no Campeonato Nacional de Velocidade e no DTM, enquanto crescia.
Em 2022, Liberal estreou um M3 E30 2.3, que usou também no ano seguinte, mas acabaria por evoluir para o actual 2.5, a expressão máxima do M3 E30. Em ambos os casos, o piloto do Porto usou decorações históricas da BMW Motorsport, mas para 2025 entendeu que poderia homenagear a história dos M3 E30 em competição de uma forma mais original e relevante.
Com uma noção mais ou menos clara do que pretendia, abordou o artista português Luís Estevinho - que assina as suas obras como Luio Onassis (no passado como Luio Zau) - e adquiriu uma obra que serviria de base à decoração. A pintura de Luio Onassis é reconhecida internacionalmente e as suas obras estão um pouco por todo o país, algumas em ambiente urbano, e já no passado tinha pintado um Mini Cooper para um projecto anterior, embora sem qualquer relação com a competição.
O estilo alegre e marcado por cores vivas, provou ser a aposta certa para a criação de um carismático Art Car que nada deve aos M3 E30 Art Car originais de Michael Jagamara Nelson (1989) e de Ken Done (1989).
Uma estreia perfeita
Este domingo, Luís Liberal competiu no Campeonato Nacional de Velocidade Legends, na abertura de uma época que planeia fazer na íntegra, depois de no ano passado ter estado mais focado no CNV.
Desde logo provou estar num ritmo difícil de bater pela concorrência mas, por causa de um erro na interpretação dos regulamentos, mereceu uma penalização que o obrigou a partir da última linha da grelha.
O que parecia um grande contratempo, só serviu para acrescentar emotividade e valor a uma vitória incontestada, em que bateu com mestria os rivais directos na luta pela vitória à geral, mais concretamente os M3 E36 de Joaquim Soares e Daniel Moreira, ambos da Classe L99 e também o M3 E30 de Paulo Lima, da Classe L90.
Na segunda prova, partindo da liderança, chegou a ser passado por Joaquim Soares, mas rapidamente recuperou a posição, para logo abrir uma vasta vantagem face a estes perseguidores. Vantagem que durou até à entrada do Safety Car em pista para a remoção de dois carros acidentados. Os líderes ficaram assim reagrupados mas, assim que a prova recomeçou, Liberal voltou forçar o ritmo, vencendo com uma margem confortável.
A performance de Liberal e do M3 Art Car, abrem boas perspectivas para o Campeonato Nacional de Velocidade Legends (que terá mais três rondas duplas), mas também para as provas que o piloto admite vir a fazer além fronteiras ao longo de 2025.
Fez-se história em Portugal
Com esta promissora vitória, escreveu-se mais uma página da história dos BMW Art Car. Ainda que à escala nacional, a conjugação de uma das mais carismáticas criações da história automóvel a uma marcante obra de arte, reveste-se de um grande significado, especialmente quando pilotada de forma exímia até ao lugar mais alto do pódio.
A forma como as imagens do BMW M3 de Luís Liberal se propagaram rapidamente pelas redes sociais e meios especializados, provam bem a genialidade da ideia original de Hervé Poulain.