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Sou fã da Jaguar e não estou chocado.

O recente “teaser” do rebrand da Jaguar chocou os entusiastas de todo o mundo. Será possível que estejam todos errados?

Nunca vou esquecer-me da primeira vez que conduzi um E-type... há sensações que um Jaguar clássico e desportivo transmite, que nenhum outro automóvel da época pode imitar. 

Um E-type, como o seu antecessor XK, tem agilidade suficiente para se bater nas pistas com qualquer rival, de qualquer marca, a qualquer preço. E apesar de refinados, não disfarçam a sensação de que tudo começou com um motor ao qual se acrescentou o mínimo essencial de carro...

O eterno motor XK, esbanjou carácter durante décadas, com a sua característica voz grossa, com o seu músculo, mas também com um vibrato nos regimes mais altos que é inebriante.

Também nunca vou esquecer-me dos Jaguar XJ que conduzi. Para mim, à época do seu lançamento, o XJ era o melhor automóvel do mundo, na medida em que reunia factores difíceis de combinar: luxo e conforto, performance, prazer de condução e elegância. Um Mercedes-Benz da mesma época parecia um transatlântico em comparação e um BMW E3 parecia asmático. 

Tudo para dizer que eu adoro a Jaguar pela sua história, mas também porque tendo tido a sorte de conduzir as diversas versões dos XK, E-type e XJ e ainda o MkII e S-type e percebo a diferença para os seus rivais. E entre os que não conduzi, estão os superlativos C-type e D-type, que construíram um dos melhores currículos de sempre de um construtor na competição.

“Grace, pace and space” foi a assinatura usada pela Jaguar nos seus anos de ouro e que, sem meias medidas, cumpriu. Uma mensagem que ilustrava perfeitamente a filosofia e a personalidade da marca, mas agora... Agora lixo com ela!

O rosa-choque é o novo verde inglês

Por esta altura acho que não preciso de explicar do que estou a falar. Até a sua mãe ou a sua avó já devem ter ouvido que a Jaguar foi alvo de um rebranding, em que tudo o que fazia parte da comunicação até à data, foi apagado das redes sociais. A própria marca diz que se trata de uma ruptura com o passado e que está a nascer de novo.

Para isso, criou um lettering mais ligeiro e moderno, que coabita com um monograma que faz lembrar o da Chanel e que podia ficar bem a adornar tanto uma pochete, como a haste de uns óculos de sol.  O “leaping jaguar”, ou seja, o perfil elegante do felino, ainda existe e aparece representado em negativo, sobre um fundo listado.

Além disto há um vídeo curto, muito cor-de-rosa e amarelo, com pessoas de aparência “alternativa”, que parecem ter saído de um daqueles desfiles de moda em que se pretende expressar tendências de estilo e não mostrar roupa que vá efectivamente estar na montra da loja (fixem isto, que é importante!).

O vídeo fala em exuberância, em rejeição do ordinário, em quebrar moldes 

Há ainda mais dois elementos: uma imagem de um automóvel camuflado, que parece uma berlina gigante com janelas mais pequenas que as da Torre de Belém, e umas imagens de estúdio que revelam um ou dois detalhes daquilo que parece ser o concept car que será apresentado a 2 de Dezembro, na Miami Art Week.


Entusiastas a soro

A apresentação desta comunicação da Jaguar provocou uma onde de choque nos entusiastas da marca. Há toda uma sensação de profunda revolta porque, afinal, isto é rasgar com a tradição e a Jaguar é uma marca que, segundo os entusiastas, vive da tradição. 

Há quem tenha definido a campanha como sendo “woke” e sendo que eu abomino tudo o que tenha a ver com essa palavra, não consigo completamente entender como um clip relativamente inócuo pode ser considerado “woke”.

O que importa é que houve uma reacção de pura revolta, com muitas manifestações de desagrado nas redes sociais, nos media, entre os influencers, jornalistas e até figuras públicas. Até Elon Musk fez piadas acerca da campanha, questionando se a marca ainda vendia automóveis, o que soa mais estranho vindo de quem vem, alguém que faz questão de lutar contra o convencional e cujos automóveis têm quase tanto de telemóvel como de transporte. 

Resumidamente, a ideia mais repetida foi a de que a Jaguar “matou um ícone britânico”

Mas o que é um ícone britânico e para que serve?

Embora não seja saudosista, entendo e gosto de muitas tradições e aceito que elas têm um papel estruturante na sociedade, como orientadores dos valores. Um bom exemplo é a coroa britânica: ninguém sabe bem para que serve, consome muito dinheiro e tem imensos problemas internos  (um pouco como a Jaguar) mas tem um importante papel simbólico para os britânicos. 

O problema é que os automóveis são, por definição, objectos tecnológicos e funcionais. Objectos que têm de acompanhar os tempos e, sobretudo, têm de cativar clientes e aqui é que reside a essência da questão. 

Eu nem sabia que havia tantos fãs da Jaguar! É que a maior parte das pessoas que se mostram chocadas, nunca sequer puseram a hipótese de comprar um. Muito menos de comprar um novo. É que, tipicamente, os Jaguar acabaram por tornar-se óptimos para comprar em segunda mão, porque o valor residual é baixo e, pelo que custa um Jaguar usado, não se consegue comprar um dos seus concorrentes directos. 

O que falta é aquele tipo de fã da Jaguar que, como dizem os ingleses “put their money where their mouth is”. Ou seja, se nunca equacionaram comprar um Jaguar, a vossa opinião interessa a todos menos a quem gere o negócio. Negócio esse que não vende...

Se a mensagem e o código identitário da marca não estão a converter ninguém, talvez valha a pena arriscar e mudar tudo, ou não?


E se o problema estiver no produto e não na imagem?

Durante décadas a Jaguar agarrou-se desesperadamente à imagem dos modelos do passado. O Jaguar XJ dos anos 90, era feito de alumínio e usava tecnologias modernas, mas continuava a ser desavergonhadamente igual ao XJ6 MkI dos anos 60. 

O momento em que a marca mais se afastou do cânone dos quatro faróis redondos e farolins verticais, foi na geração XJ40 e, mesmo nessa altura, os conjuntos ópticos rectangulares foram alvo de grande contestação. Por isso e, apesar do sucesso comercial, a marca acobardou-se e voltou à forma de sempre. 

Nessa altura a Jaguar comportou-se como o “ícone britânico” que hoje dizem estar morto e ainda foi mais além:  colou as linhas tradicionais a um Ford Mondeo rebaptizado como X-type e “ressuscitou” o S-type, com base num Lincoln. Ambos eram automóveis decentes, mas nenhum jovem quereria ser visto naquilo... 

Nem um jovem, nem uma pessoa de meia-idade pois, como se sabe, essas desejam sempre projectar uma imagem mais jovem do que a realidade. Como dizia o executivo americano da Pontiac, Bunkie Knudsen: “É possível vender um carro de jovem a um velho, mas não é possível vender um carro de velho a um jovem” e aí residiu durante muito tempo o problema da Jaguar. 

O mito da fiabilidade

Há quem aponte a má-sorte da Jaguar à fama de falta de fiabilidade. Esta é uma fama que perdura desde os dias em que a marca foi englobada no aglomerado British Leyland e que, efectivamente, significou uma descida considerável da qualidade de acabamentos e também a partilha de alguns componentes eléctricos menos robustos. 

É verdade que o segredo da Jaguar sempre esteve em poupar custos em aspectos menos visíveis, como forma de apresentar um produto apelativo, mas que envelhecia um pouco pior. Ainda assim ,a qualidade era acima da média para a época, e se é certo que um XJ6 poderia não ter a robustez de um Mercedes-Benz, a verdade é que o batia categoricamente em tudo o resto.

No entanto, a piada fácil e o facto de muitos formarem opinião sem nunca terem sequer conduzido um Jaguar, fez com que percepção de falta de qualidade se colasse à pele do felino. 

Na verdade, um estudo recente da auditora independente J.D. Power no mercado americano, com base em consulta a clientes e oficinas quanto à fiabilidade, colocou a Jaguar acima da Mercedes-Benz e Porsche. 

Claro que conta, para isso, o facto de por lá não ser tão comum o motor Ingenium 2.0 diesel que, aparentemente, é de facto frágil. Mas também o são motores como os BMW N47 e outros tantos de fabricantes prestigiados. 

O passa-palavra da falta de fiabilidade é muitas vezes propagado pelos mesmos que agora estão chocados com o que a Tata fez à Jaguar, sem terem noção de que esta reputação afecta seriamente o valor residual dos modelos e tem tido implicações na vida da marca.


Os modelos certos, resultados errados. 

O que estava afinal errado na Jaguar dos últimos 15 anos? Aparentemente, nada que seja visível ao consumidor. 

Apresentado em 2007, o XF provocou um misto de reacções: se os conservadores achavam que o S-type era “mais Jaguar”, os mais progressistas achavam o desenho de Ian Callum pouco arrojado. O habitáculo, no entanto, representava uma quebra fortíssima para com o passado. 

Pela primeira vez, um Jaguar XJ não era parecido com o modelo original. Era moderno, agressivo e tinha um habitáculo vanguardista. As formas eram originais e não seguiam tendências. 

Quando em 2010 a Jaguar apresentou o XJ da geração X351, houve igualmente um tumulto do lado dos conservadores, porque, finalmente, não havia sinais do XJ dos anos 60. Este era o modelo certo, para o momento certo. Mudar o modelo mais emblemático, foi a forma da Tata mostrar ao mundo que a Jaguar era agora algo novo e que saberia desprender-se do padrão de desenho já cansado. 

Contudo, era evidente que se mantinha os valores essenciais: eram um modelo luxuoso, mas com atenção à dinâmica, com um desenho que sugeria mais atitude desportiva do que os rivais e que integrava as mais modernas tecnologias. 

O mesmo padrão de desenho foi depois transportado para a gama mais baixa. O XE pretendia rivalizar com os Série 3 e Classe C e, efectivamente, tinha o essencial: conforto, estética com personalidade, transmissão às rodas traseiras e um belo comportamento dinâmico e, no entanto, as vendas foram aquém das expectativas. E porquê?

Frotas: onde se joga a sobrevivência

A Jaguar lançou ainda outros bons produtos nesta era. O F-type, além de muito bem desenhado, mereceu sempre elogios da imprensa especializada. Os SUV E-Pace e F-Pace também não tinham nada que os tornasse especialmente inferiores e, também estes pouco venderam. 

Foi o eléctrico I-Pace, aquele que mais impacto teve no mercado nesta fase da marca. Era um produto com um desenho arrojado, com uma autonomia razoável e com bom desempenho. Infelizmente, entrou no mercado com um preço demasiado optimista e depois de alguns acertos, vendeu razoavelmente, tirando dividendos de ter sido uma das primeiras alternativas sérias aos Tesla, com bastante mais estilo. 

Mas, uma vez mais, as vendas não foram suficientes para fazer uma viragem nos destinos da marca. E porquê?

Porque são cada vez menos as famílias que adquirem um veículo de segmento médio-alto. As frotas de empresa são, cada vez mais, responsáveis pela maioria das vendas. E isso afecta também o comprador particular, que dificilmente se deixa convencer pelo produto, se não o vir na estrada todos os dias. 

E aqui, a culpa não é de nenhuma estratégia, mas do facto do Grupo JLR (Jaguar-Land Rover) não ter, apesar da ajuda da Tata, o poder negocial com as financeiras que lhe permita oferecer aos clientes prazos de amortização alargados e com baixos encargos, porque a dimensão do grupo faz com que haja mais urgência no retorno do capital do que acontece com os grandes gigantes.

É talvez essa a realidade que motiva a marca a querer posicionar-se agora num segmento superior, onde há margens mais generosas. E para isso, decidiu que era necessário quebrar barreiras. Não terá exagerado? 

Um vídeo estranho

A verdade é que, concorde-se ou não com a estratégia, dificilmente alguém achará aquele vídeo cativante ou efectivamente bem elaborado. Quando temos alguns segundos de atenção do potencial cliente e as únicas mensagens está escritas e não representadas, a sensação é de que houve alguma preguiça em termos criativos. 

Trabalhei como criativo para agências de publicidade há já mais anos do que gosto de admitir e, na época, fazia-se um esforço maior por passar mensagens. Hoje, a publicidade está focada nos “moods”, ou seja, nas atitudes que podem representar a personalidade da marca, deixando os argumentos para outros momentos de comunicação. Nesta primeira fase, tudo o que se quer é captar a atenção. 

Nesse sentido, não podemos dizer que a campanha é mal-sucedida e, quem o disser, é porque esteve sem ligação à internet nas últimas semanas. 

A questão é saber se não se foi longe demais. Será que o público é hoje tão progressista como os criativos gostam de acreditar? Será sequer que os criativos estão preparados para se colocar na mente do perfil de cliente de um Jaguar?


Pessoas do marketing que não são dos automóveis.

Espero que a Jaguar esteja certa, mas se estiver errada, não será primeira a errar redondamente, em estratégias que nós, entusiastas, percebemos desde o primeiro momento que estão condenadas a falhar. 

Recordo quando em 2011 a Lotus anunciou que o seu novo vice-presidente de marketing global e design criativo seria o rapper Swizz Beatz, marido de Alicia Keys. Para alguém que entenda os valores Lotus, ficava logo evidente que o caminho que estava a ser traçado não fazia grande sentido. De que vale pegar numa marca como a Lotus, com uma imagem ligada a agilidade e minimalismo, para criar uma gama “mainstream”, com SUV e sedans? 

Agora, anos mais tarde, a Lotus insistiu no SUV eléctrico e o resultado está à vista: mesmo no Reino Unido é quase impossível encontrar um na estrada e a marca anunciou esta semana que vai repensar a viragem total para os EV’s.

Todas estas mudanças nas marcas, que não têm em conta o perfil do cliente, ou sequer do potencial cliente, existem porque os construtores empregam reputados especialistas de marketing que, infelizmente, não são especialistas em automóveis e admitamos: nós, entusiastas, somos seres demasiado complexos, exigentes, picuinhas. E uma marca como a Lotus, ou mesmo a Jaguar, terá sempre a sua sobrevivência dependente de quem olha para um automóvel de forma apaixonada.

Então, mas que Jaguar vem aí?

Apesar de tudo, acho que todos quantos apontam o dedo a esta campanha da Jaguar, estão a precipitar-se. Até vermos o concept e ouvirmos o plano para o futuro, tudo não passa de palpites. 

Tem sido repetido que a estratégia da Jaguar passa pela electrificação total, mas essa é uma afirmação antiga que, perante tanta mudança, não sabemos se será para manter. 

As imagens que existem do protótipo camuflado, sugerem algo de proporções estranhas. Eu apostaria que será um grande sedan com um estilo não muito diferente de um BMW I7, precisamente aquilo que a BMW decidiu abandonar.

Contudo, os detalhes do concept apresentados na campanha são curiosos, na medida em que nos transportam para a era em queas marcas mostravam nos salões exercícios de estilo muito bizarros, cuja aplicação prática parecia nula, até vermos o modelo final e percebermos que, se calhar, até fazia sentido. Exactamente como naqueles desfiles de moda em que há raparigas vestidas de sacos do lixo e rapazes que parecem disfarçados de caixa multibanco. 

A questão é que não sabemos se o que vamos ficar a conhecer já no dia 2 é o concept ou o produto final.

Chocar resulta e não é só na comunicação. No design, também funciona. Pensemos nas criações da Zagato, de Roberto Opron ou de Chris Bangle. Pensemos no Porsche 928 ou no 996. Apesar da exagerada irreverência, são ideias que envelheceram bem e que, nalguns casos, se traduziram em grandes sucessos comerciais.

A Jaguar não é isto mesmo?

Naturalmente, todos aqueles que endereçam mensagens de ódio aos gestores da Jaguar só por causa do vídeo, irão dizer que o novo modelo, provavelmente futurista, “não tem nada a ver com Jaguar”. 

A eles eu digo, desde já, que estão errados. O próximo Jaguar pode bem ser uma aberração, mas não é por ser futurista e desligado do passado que deixa de ser um verdadeiro Jaguar. Porque se a marca foi o que foi nos anos 40, 50 e 60, foi por pensar mais à frente, senão vejamos: o esguio E-type não representava uma ruptura total para com as formas voluptuosas dos XK? O XJ não era invulgarmente baixo e desportivo para os padrões da época duma berlina de luxo? E o XJS, era ou não um coupé que não se parecia com nada?

Todos eles foram bem-sucedidos, porque todos eles foram concebidos a pensar no futuro e não no passado. Essa, sim, é a atitude que fez da marca aquilo que é. Para os saudosistas e entusiastas das máquinas do passado, continuará a existir o Jaguar Heritage e dezenas de milhar de fantásticos E-type, XJ e muito mais no mercado, alguns deles no marketplace da Motorbest.

Confesso que não estou optimista quanto ao que aí vem, mas sem tentar algo novo, no cenário estranho da actual indústria automóvel, a Jaguar iria seguramente extinguir-se. Assim, há uma réstia de esperança...

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