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Lancia: Um épico sem final feliz

Numa perspectiva de entusiasta, Duarte Pinto Coelho fala das razões para admirar a Lancia e para chorar o seu fim inglório.

Texto de Duarte Pinto Coelho

Todos nós, entusiastas de motores, temos sempre lá bem no fundo, seja por razões mais emocionais ou mais objectivas, uma marca de automóveis ou de motos “do coração” que nos toca mais do que qualquer outra.
No meu caso, de entre a meia dúzia de marcas de carros que me dizem mais, há uma que distingo particularmente: a Lancia.
Nasci e cresci o mais novo de cinco irmãos numa casa onde não me lembro de ouvir falar de futebol, mas onde se falava muito de carros e motos, onde havia um enorme parque de Dinky Toys e onde se ia em família assistir às corridas de automóveis a Monsanto.
Naquele princípio dos anos 1950’s tornou-se famoso em Portugal, e era um herói lá em casa, Felice Bonetto, um piloto italiano muito rápido e muito destemido com um longo palmarés que já vinha desde antes da II Guerra, que veio correr e obter algumas vitórias em Portugal e que a partir de 1952 passou a correr pela “Scuderia Lancia”. Teve vários sucessos importantes, ganhando a Targa Florio e tendo bons resultados em Le Mans e nas Mille Miglia de 1952. Em 1953 venceu brilhantemente o circuito de Monsanto num belíssimo Lancia D 23. Nesse mesmo ano, com a respeitável idade de 50 anos e bem à maneira do herói romântico, veio a morrer num brutal acidente quando liderava a terrível “Carrera Panamericana”, ao volante de um Lancia D 24. Após este acidente, a equipe Lancia ainda ponderou retirar os restantes carros da prova mas os pilotos insistiram em prosseguir, como forma de homenagear o companheiro morto e ainda bem que o fizeram porque os três Lancia D 24 vieram a alcançar os três primeiros lugares da prova, o que diz bem sobre a enorme qualidade daqueles fabulosos carros de Sport.

Em 1954 e 1955 a Lancia apresenta-se no campeonato mundial de formula 1 com o D 50, um carro genial com um brilhante motor V8 que integrava o chassis que era compacto, equilibrado e muito ágil. Nas mãos de Alberto Ascari imediatamente mostrou o seu enorme potencial, não chegando a ganhar provas, mas conseguindo diversas poles e voltas mais rápidas.
Claro que todos estes feitos da Lancia contribuíram para a tornar, para mim, num mito e ganhar um lugar muito especial no meu imaginário, mas talvez mais importante ainda tenha sido o facto de um meu tio, irmão do meu Pai, que era um típico Gentleman Driver da época, ser um “Lancista” ferrenho e ter feito três Ralies de Monte Carlo em Lancia Aurelia. A sua influência foi decisiva para convencer o meu Pai a comprar um Lancia Aprilia (TP-10-68). Um carro fantástico na época e que, embora tanto quanto me lembro, não tenha ficado muito tempo lá por casa, me deixou uma marca indelével.
Quando, já adulto, me iniciei nisto dos carros antigos, um dos primeiros que comprei claro que foi um Lancia, um Aurelia B20 de 1952 da 2ª série. Por circunstâncias várias não concluí o seu restauro e nem cheguei a guiá-lo, mas já deu para me aperceber da qualidade do fabrico e das soluções técnicas que mais tarde vim a confirmar e a aprofundar quando tive dois Aurelia B24 Spider de 1955 e um Aurelia B20 IV série de 1956.
Só quem já teve oportunidade de conhecer bem estes carros pode compreender o que os diferencia de todos os demais daquela época – claro que os Ferrari e os Maserati tinham grandes motores, claro que os Mercedes e os Porsche tinham excelente qualidade de construção, claro que os Jaguar e os Alfa Romeo eram emocionantes de conduzir, claro que muitos outros tinham grandes atributos – mas os Lancia eram de uma classe à parte, pois aliavam um enorme arrojo tecnológico com inovações de grande eficácia, a uma qualidade de engenharia e de construção sem paralelo e, além disso, eram carros belíssimos mas muito discretos. Enfim, verdadeiros “carros de Senhor”.
Fundada por Vicenzo Lancia, a filosofia da marca sempre foi a de fazer tudo do melhor sem olhar a custos, tinha era de ser eficaz e de grande qualidade, o que obrigava a praticar preços muito elevados com a consequente limitação de vendas, facto que explica muitos dos momentos financeiramente difíceis que a marca atravessou ao longo da sua história.

Desde a sua fundação até ao começo da 2ª Guerra, a Lancia destacou-se pela qualidade dos seus modelos e pela inovação – o célebre Lambda (1922 a 1931) foi o primeiro automóvel de produção com construção monobloco sem chassis separado, o primeiro com suspensão independente à frente e o primeiro com motor de quatro cilindros em V muito fechado num bloco único – a que se seguiram outros modelos notáveis e que veio a culminar no fantástico Aprilia lançado em 1937, ano da morte de Vicenzo Lancia.
Há um facto pouco divulgado e que é determinante para os destinos da marca a partir de 1945: Durante a guerra, a administração da Lancia terá tido ligações à resistência italiana e, quando o conflito terminou e a marca, tal como as demais, se candidatou aos apoios do Plano Marshall, mercê de umas intrigas e de uns movimentos menos dignos da concorrência, os apoios foram-lhe negados a pretexto de que a marca era próxima dos comunistas…
Para o jovem Gianni Lancia que acabava de pegar nas rédeas da indústria familiar, este foi um enormíssimo handicap, mas isso não o impediu de, contando com o importantíssimo apoio do genial engenheiro Vittorio Jano, e ao mesmo tempo que continuava a produção do Aprilia, do Ardea e preparava o lançamento dos novíssimos Aurelia e Appia, se lançar com enorme (e ruinoso)
entusiasmo, num programa desportivo muito ambicioso donde resultaram os fabulosos modelos D24 em Sport e o D50 na Formula 1, qualquer deles tecnicamente muito à frente da maioria dos rivais e talvez ao mesmo nível dos carros da poderosa Mercedes.
1955 é o ano dos acontecimentos que ditaram uma mudança profunda na marca Lancia: Na classe Sport o D24 já tinha exibido a sua superioridade e não havia mais nada a demonstrar e agora as atenções estavam concentradas no desenvolvimento do prodigioso D50, o fórmula 1 que logo na primeira época, nas mãos de Ascari, conseguiu vários sucessos e se mostrou muito promissor. A morte estúpida de Ascari (a ensaiar um Ferrari…) teve um efeito devastador no seu amigo muito próximo Gianni Lancia e, como uma desgraça nunca vem só, na mesma altura os problemas financeiros da Lancia atingiram um ponto tal que ameaçavam a sobrevivência da marca. A família Lancia viu-se obrigada a vender a empresa a Carlo Pesenti que deu continuidade ao espírito da marca e ainda veio a produzir modelos importantes como o Flamínia, o Flávia, o Fulvia ou o Stratos. Mas, a partir do fim dos anos 1970’s, a imagem da Lancia foi perdendo o seu enorme carácter e o seu brilho foi-se esbatendo ao longo do tempo.
Quando naquele ano trágico de 1955 a Lancia estava à beira da ruína, o estado interveio e, entre outras medidas, intimou o ainda patrão Gianni Lancia a ceder a Scuderia a um senhor que também fazia carros de corrida e que por acaso naquela época dispunha de um carro de Formula 1 muito pouco competitivo – o Ferrari 555 mais conhecido por Squalo – e foi desta forma que todos os Lancia D50, as peças sobressalentes mais os camiões e demais equipamento da Scuderia foram direitos para Maranello, onde eram aguardados por Enzo Ferrari, que do alto da sua arrogância e com a astúcia em que era mestre, se permitiu exigir ao Estado Italiano (e obter) uma soma em dinheiro para aceitar aquele material!
A vida pode ser muito injusta, já todos o sabemos, mas se a mim, simples entusiasta da marca, me causa tão grande revolta, não consigo imaginar o que terá sido para Gianni Lancia (que viveu até 2014 completamente afastado do mundo automóvel) assistir à glória dos seus geniais Lancia D50 que, exibindo no seu nariz o emblema do “Cavalino Rampante”, obtiveram para a Ferrari a vitória no campeonato do mundo de Formula 1 de 1956, nas mãos do grande Juan Manuel Fangio!

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