Um dos 18 Jaguar XKSS vai a leilão
Fotos: RM Sotheby's
Tal como a Bentley forjou a sua reputação em Le Mans na década de 1920, também a Jaguar o fez uma geração mais tarde. A marca sediada em Coventry espelhou exactamente o recorde de Cricklewood com umas notáveis cinco vitórias em sete anos entre 1951 e 1957. As de 1951 e 1953 foram alcançadas com o XK120C - ou C-Type - mas foi o hat-trick de vitórias entre 1955 até 1957, garantido pelo seu inovador sucessor, o D-Type, que tornou a Jaguar numa lenda de Le Mans.
O brilhante engenheiro Malcolm Sayer foi fundamental no design de ambos os automóveis, mas na composição técnica partilharam surpreendentemente pouco. Ambos recorrem ao motor XK 3.4, mas o D-Type usava já um sistema de cárter seco. Mais importante ainda, enquanto o C-Type empregava um chassis tubular tradicional, revestido com uma carroçaria em alumínio, o D-Type apresentava uma intrincada secção central monocoque em alumínio rebitado, na qual foram fixados sub-chassis tubulares dianteiros e traseiros para o motor e o eixo traseiro.
Como antigo engenheiro da Bristol Airplane Company, a familiaridade de Sayer com as estruturas do tipo fuselagem – e a tecnologia aeronáutica em geral – revelou-se inestimável; outras características de inspiração aeronáutica do D-Type incluíam travões de disco Dunlop de última geração e uma célula de combustível de borracha deformável. Crucialmente, o carro também beneficiou de extensos testes em túnel de vento. Este foi um factor crítico para a sua excelente eficiência aerodinâmica e sucesso final em La Sarthe.
O anúncio de um limite de capacidade de 3 litros para os eventos do Campeonato Mundial de Sport, a partir de 1958, levou a Jaguar a retirar-se oficialmente das corridas em Outubro de 1956, e encurtou visivelmente a vida competitiva do D-Type.
Nessa altura, já tinham sido produzidos 42 exemplares do D-Type. A procura, entretanto, diminuiu, pelo que 25 do lote original de 67 automóveis permaneceram por vender. A resposta da Jaguar a este problema foi criar uma versão adequada para a estrada do D-Type, denominada XKSS. Os planos para a conversão do XKSS foram discutidos por Sir William Lyons com Bill Heynes e, por sua vez, com Phil Weaver, que levou um D-type de volta para o departamento de competição. Aí, Bob Blake desenvolveu o protótipo de acordo com as instruções, mas usando alguma iniciativa. Para criar o XKSS, os D-Type foram alterados de diversas formas, embora nenhuma fosse de grande importância estrutural. A divisão central entre o condutor e o passageiro foi cortada, a "barbatana" atrás do piloto foi removida e foi instalada uma segunda porta para o passageiro. As portas podiam ser equipadas com forro e era fornecida uma capota.
Foi instalado um pára-brisas emoldurado a toda a largura do habitáculo e com um estilo envolvente e dois limpa-vidros, um porta-bagagens foi adicionado enquanto o acabamento brilhante dos farois e os pára-choques delicados, prenunciavam os itens que apareceriam mais tarde no E-Type. Com uma incrível relação potência/peso, o XKSS resultante manteve o tremendo desempenho do D-Type, com uma velocidade máxima próxima dos 240 km/h e uma aceleração até aos 100 km/h em menos de seis segundos. Conseguia atingir os 160 km/h em cerca de 13 segundos.
Confrontada com um conjunto de automóveis que em breve se tornariam obsoletos, a Jaguar tomou a decisão de converter 18 chassis para a especificação XKSS com a dupla finalidade de estrada/corrida. Infelizmente, apenas 16 automóveis foram concluídos antes do famoso incêndio na fábrica de Coventry, a 12 de fevereiro de 1957, destruindo os restantes nove automóveis, bem como os gabaritos e as ferramentas para a sua conclusão.
A elegibilidade para eventos do Sports Car Club of America garantiu que cerca de 14 exemplares fossem exportados para a América do Norte, com um carro vendido para Hong Kong e outro a ficar no Reino Unido. Além desses 16 exemplares, mais dois D-Type – XKD 533 e XKD 540 – mantiveram os seus números de chassis de corrida e foram convertidos para as especificações XKSS pela fábrica em 1958. É o segundo destes dois chassis que a RM Sotheby’s tem o prazer de oferecer aqui.
Os registos de fábrica indicam que o XKD 540 foi concluído na fábrica da Jaguar em Brown’s Lane a 1 de Novembro de 1955 na forma D-Type “Short Nose” de produção, com acabamento na clássica combinação de cores Jaguar da British Racing Green com interior em pele Suede Green. Curiosamente, permaneceu sem ser vendido durante mais de um ano. Os registos contemporâneos da Jaguar listam o carro – de forma algo enigmática – como “redundante após a experiência”, embora mais detalhes sobre o que exactamente esta experiência implicou, permaneçam um mistério.
A 29 de abril de 1957, o automóvel foi vendido aos agentes Jaguar Coombs de Guildford. Mais tarde, nesse ano, o automóvel foi vendido ao seu primeiro proprietário registado, um rico fabricante de máquinas têxteis e alpinista entusiástico, Phil Scragg de Macclesfield, Cheshire, que registou o automóvel com a matrícula de Manchester “WVM 3” e o pintou novamente na sua tonalidade habitual. Entusiasta de longa data da Jaguar, Scragg já tinha pilotado um SS100 e um HWM-Jaguar, e a sua coleção incluiu, mais tarde, dois Lister-Jaguar e o último E-Type Lightweight produzido.
Por insistência de Scragg, o chassis XKD 540 regressou a Brown's Lane a 27 de novembro de 1958 para conversão para a especificação XKSS completa. Isso ficou registado em detalhe na correspondência entre ele e o lendário ex-gestor de equipa da Jaguar – e então diretor de serviços. Além da instalação de pára-brisas, porta do passageiro, bagageira, capota e pára-choques, de acordo com o padrão do XKSS, o carro também foi convertido para uma relação final 3,92:1 para melhorar a aceleração.
Apesar das impressionantes credenciais de Scragg como piloto de rampas , parece que a utilização do XKD 540 foi relativamente modesta, uma vez que em outubro de 1959 foi vendido a Jack Browning de Cheltenham, Gloucestershire. Ao longo de 1960, Browning conduziu o carro em várias rampas, com um segundo na lugar na classe em Prescott e em Bouley Bay, em Jersey, a serem os resultados mais notáveis do XKSS. A 21 de outubro de 1960, o XKD 540 foi devolvido a Brown's Lane para ser alargado a 3,8 litros, mas manteve a sua cabeça de cilindro original. A correspondência entre a Browning e o departamento de assistência da Jaguar, confirma-o novamente. O carro foi montado pela Browning em Novembro de 1960 e competiu desta forma em Prescott e nos "Speed Trials" de Brighton e Weston-Super-Mare em 1961.
Em Fevereiro de 1962, o XKD 540 passou para outra alpinista proeminente, Betty Haig. Embora o carro tenha sido registado novamente com o seu número de matrícula personalizado “BLH 7”, a sua custódia durou pouco tempo e o carro foi vendido através do intermediário Jack Playford a Laurie O’Neill de Sydney, Austrália. Em 1965, o carro foi comprado pelo versátil piloto de rampas - e por vezes de Fórmula 5000 - Colin Hyams, de Melbourne, em cujas mãos competiu ocasionalmente. Curiosamente, o arquivo histórico do automóvel contém uma fotografia do grande Jim Clark ao volante, acompanhado pelo amigo e rival Jackie Stewart no lugar do passageiro. Os dois escoceses aparentemente experimentaram o carro enquanto disputavam a Tasman Series de 1967.
Em 1968, a compra de um Ford GT40 por Hyams, acelerou a venda do XKD 540, mais concretamente ao proprietário da garagem de Melbourne, Bill Clemens, no final desse ano. No entanto, o automóvel regressou ao Reino Unido em 1972, quando foi adquirido pelo famoso colecionador Jaguar, Bryan Corser de Shrewsbury, Shropshire. Na altura, a coleção de Corser incluía o último C-Type produzido, o D-Type ex-Jim Clark e o E-Type Lightweight ex-Peter Sutcliffe, pelo que este XKSS dificilmente poderia estar em melhores mãos.
Sendo adepto dos Concursos de Elegância, Corser restaurou o automóvel para o mesmo standard dos seus outros Jaguar. Tendo mantido e ocasionalmente exposto o automóvel durante mais de uma década, Corser vendeu o XKSS a Peter Fowler em 1985, que em pouco tempo o vendeu a Hermann Graf von Hatzfeldt de Wissen, Alemanha. Nas mãos do Graf von Hatzfeld, o carro disputou a Mille Miglia Storica e várias edições do Nürburgring Oldtimer Grand Prix. O estado notavelmente preservado do carro era algo de que o proprietário se orgulhava justificadamente.
Após cerca de 24 anos de propriedade, Graf Hatzfeld vendeu o XKD 540 a Jaroslav Pawluk de Schwalmtal, Alemanha, em 2008, que o utilizou apenas com moderação e contratou os principais especialistas da Jaguar, a Pearsons Engineering, para tratar da sua manutenção contínua. Em 2011, o automóvel beneficiou de uma uma revisão profunda que incluiu o sistema hidráulico, a inspecção da cabeça, revisão dos carburadores e distribuição, a um custo de quase 10.000 libras. Cerca de seis anos mais tarde, foi iniciada uma revisão mais extensa, com o motor, a caixa de velocidades e o eixo traseiro do carro removidos e todos os componentes da suspensão, direcção e travões testados quanto a fissuras. Um extenso trabalho de restauro cosmético foi realizado no chassis monocoque e nos sub-chassi dianteiro e traseiro, enquanto os circuitos combustível, óleo e refrigeração também foram revistos, num trabalho no valor de cerca de 44.110 libras.
Adquirido pelo actual proprietário em 2017, e utilizado apenas minimamente desde então, o automóvel beneficiou de manutenção recente por parte da CKL Developments Ltd, cujo proprietário, Chris Keith-Lucas, cuidou do automóvel pela primeira vez há quase 40 anos. O trabalho recente incluiu uma revisão adicional da suspensão dianteira e dos travões, pequenas reparações elétricas e a renovação do capot e da cauda originais, com despesas a exceder as 17.000 libras.
Não há dúvida de que o Jaguar D-Type se enquadra confortavelmente no panteão dos maiores automóveis desportivos de competição de todos os tempos. No entanto, poucos contestariam que o seu irmão quase idêntico, o XKSS, merece uma avaliação igualmente brilhante entre os seus pares. Na verdade, não só representa, sem dúvida, o mais cativante e exclusivo de todos os Jaguar de estrada, como merece certamente ser incluído ao lado de nomes como Alfa Romeo 8C, Ferrari 250 GT California Spyder e McLaren F1, como um dos mais importantes e procurados automóveis de estrada.
No caso do chassis XKD 540, o seu desempenho e apelo estético são igualados apenas pela sua proveniência e originalidade irrepreensíveis. Observa-se que o carro mantém o seu chassis, sub-chassis dianteiro e carroçaria de números correspondentes, enquanto os principais componentes, incluindo o eixo traseiro, a suspensão e os componentes de travagem - e até mesmo itens auxiliares, como o tanque principal, tanque de cárter seco, radiador, radiador de óleo e estrutura do capot - são provavelmente originais do chassis. O Jaguar é acompanhado por um generoso pacote de peças sobressalentes que inclui faróis, eixo traseiro (numerado “F55046”), radiador Marston Excelsior, hastes de pistões, rodas, rolamentos de roda e muito mais
Dada a vida itinerante do automóvel e a passagem de mais de seis décadas, isto é ao mesmo tempo notável e um testemunho da propriedade informada e solidária de que sempre gozou. Exaustivamente documentado, impecavelmente preservado e meticulosamente mantido, continua a ser um dos poucos D-Type ou XKSS considerados irrepreensíveis e destinado a servir como uma peça central espectacular e única em qualquer colecção futura.