Golf: a VW arriscou a vida há 50 anos.
O Golf foi de tal modo estrutural no sucesso e crescimento da Volkswagen, que o seu nome é quase tão valioso como o da própria marca, razão pela qual o seu anunciado fim acaba de ser adiado por prazo indefinido.
Para se ter tornado num dos automóveis mais importantes deste meio século, foi fundamental o desenho de Giugiaro mas, sobretudo, a definição de uma fórmula certa. Porque se hoje é um dado adquirido que um automóvel compacto tem de ter: a) transmissão dianteira; b) motor transversal em posição dianteira arrefecido a líquido; c) portão traseiro, há 50 anos tudo isso era discutível, como provam os protótipos na génese do Golf.
EA 266: uma fraca ajuda da Porsche
O sucesso comercial inesperado do Carocha ao longo dos anos 50 e 60, foi quase um presente envenenado para a VW. Embalada pela facilidade com que se vendia uma fórmula concebida nos anos 30, a marca mais não fez do que criar duas derivações do mesmo conceito técnico: a Type 2, mais vulgarmente conhecida como pão-de-forma, e o Type 3, uma espécie de familiar, disponível nas versões sedan, coupé e station, sempre com duas portas.
Até os alemães já criticavam a insistência no motor boxer arrefecido a ar, quando o resto da indústria parecia estar a outro ritmo.
É então que a administração de Wolfsburg decide voltar à “fonte”, pedindo à Porsche que “reinvente” o automóvel utilitário. Ferdinand Piëch, ainda muito jovem, viria a ser o supervisor deste projecto que consistia num pequeno compacto de dois volumes, com motor de três cilindros em linha, montado em posição longitudinal traseira, com capacidades entre os 1000 e os 1600cc e potências que chegavam aos 100cv.
Com as vendas do Carocha a decair, a VW sentia-se pressionada e, por isso, em 1969, deu luz verde ao projecto, com a Porsche a produzir, rapidamente, 50 protótipos. As fotos promocionais e o trabalho de comunicação foram igualmente apressados, para que chegasse ao mercado o quanto antes, até que Rudolph Leiding tomou as rédeas da marca e pôs travões a fundo no projecto.
No fundo, Leiding constatou o óbvio: o EA 266 era uma ideia terrível. A colocação do motor sob o habitáculo implicava que qualquer intervenção mais complexa obrigasse a desmontá-lo, isso sem contar com os problemas óbvios como o ruído a bordo e o calor. E tal como os Carocha, ou um Porsche da época, a condução à chuva era, no mínimo, delicada. A tudo isto, havia que somar o desenho peculiar, com “olhinhos de caranguejo”.
EA 276: a provar que pior é sempre possível
Uma das razões que fizeram abortar o projecto do EA 266 foi o custo de produção e manutenção. Daí que o projecto alternativo tenha sido criado internamente, em Wolfsburg.
Por esta altura, a VW já sabia que tipo de automóvel queria, tendo como prioridade o espaço interior e a versatilidade, com o uso de um prático portão traseiro. E porque o comportamento dinâmico teria de ser também seguro e moderno, surgiria o eixo traseiro semi-independente e o depósito de gasolina montado na traseira. Isto porque o layout mecânico seguia a tendência do mercado, com o motor colocado em posição dianteira, transmitindo a potência às rodas da frente.
Tudo parecia muito moderno até se abrir o capot e... encontrar o mesmo boxer do Carocha!
E porque uma desgraça nunca vem só, toda a estética era aberrante, com uma traseira não muito diferente da que conhecemos do VW Brasilia e um habitáculo pobre, com um tablier reminiscente de um 1303.
À terceira é quase de vez
Sendo certo que a VW “dormiu à sombra da bananeira”, durante as décadas de sucesso do Carocha, por outro lado, usou bem os generosos lucros ao adquirir a Auto Union, com a consequente criação da marca Audi.
Um dos cérebros por detrás da operação Audi foi precisamente Rudolph Leiding, que trouxe consigo, para a VW, uma abordagem completamente diferente do que deveria ser um automóvel moderno.
Assim, o projecto EA 377, nascido sob a sua égide, usaria um “convencional” motor de quatro cilindros em linha refrigerado a líquido e montado em posição transversal dianteira, o cânone que o Fiat 128 tinha confirmado como o rumo certo para os automóveis compactos.
Por esta altura, os executivos da empresa já se tinham convencido de que a estética desempenharia um papel muito importante no destino do novo modelo. Como tal, uma comitiva de seis administradores foi ao Salão de Turim, com o objectivo de fazer uma “short-list” dos seis automóveis esteticamente mais interessantes do certame. “Reza a lenda” que quatro dos seis modelos eram criações de Giugiaro, pelo que a contratação da Italdesign foi o passo lógico.
Quando o designer italiano reuniu com a equipa da VW, ficou surpreendido pelo caderno de encargos muito “fechado”, que tinha já definidos detalhes como quotas interiores de altura e largura do habitáculo, distância entre eixos, comprimento total, portão traseiro, etc.
Nascia assim o protótipo quase, quase fiel ao modelo final...
A vitória do contabilista
Giugiaro sabia que era necessário romper com a estética “eterna” do Carocha, se o novo modelo quisesse afirmar-se como algo verdadeiramente novo. Para isso, apostou nas linhas angulares que, de resto, eram já uma marca da época.
Olhando para o EA 377, percebe-se que era já um produto quase final, em que a única diferença marcante para o Golf MkI eram as ópticas rectangulares. Esta era uma opção coerente do designer, mas os contabilistas de Wolfsburg disseram “nein”!
É que, produzir ópticas rectangulares era, à época, bem mais caro do que usar o formato redondo. Por isso, os contabilistas ganharam ao designer mas, desta vez, isso merece celebração.
Isto porque, fruto da sua genialidade, Giugiaro soube responder ao desafio e fazer do problema um trunfo, assumindo o contraste entre a forma dos faróis e as linhas da carroçaria, combinando-as de forma harmoniosa e, acima de tudo, distinta, criando um dos desenhos mais facilmente identificáveis daquela época.