Retromobile: a nossa Disneylândia
Fotos: Hugo Reis / Organização
Sim, é “obrigatório”. Um entusiasta que se preze, tem de ir, pelo menos uma vez, à Expo Port de Versailles para entrar numa dimensão surreal desta nossa paixão. Todos aqueles modelos que o fazem ficar colado durante minutos a fio a apreciar uma só foto numa página duma
revista, todos os modelos que preencheram as suas fantasias de criança (e talvez as de adulto), eles estão lá.
Ir à Retromobile é, para um de nós, como uma criança ir à Disney: ambos ficam em Paris, ambos criam excitação nos dias anteriores, ambos implicam muitas horas a pé, ambos resultam em despesas em recordações e “brinquedos”.
Em rigor, para a maioria de nós, a Retromobile também representa um mundo de fantasia, pois grande parte dos veículos expostos só são acessíveis nos sonhos. Mas é isso mesmo que torna este salão especial e fascinante. Para fazer compras, há outros.
Ano, após ano, a Retromobile é, sem surpresa, a referência entre os salões de veículos clássicos. Ainda assim, a edição de 2024 conseguiu superar expectativas, com exposições temáticas notáveis e um lote de veículos que só existem num mundo de fantasia.
Recordamos a nossa visita do ano passado, para inspirá-lo para a próxima.
Uma viagem bem preparada e alguma sorte...
Quando tomámos a decisão acerca do voo, pensámos sobretudo na comodidade e em aproveitar o melhor possível o tempo de que dispúnhamos. Por isso, optámos por um voo um pouco mais caro (59€ na ida e 70€ no regresso) que aterrasse em Orly, pois isso permitia ficar mais perto do centro de exposições, o que significava chegar à hora de abertura do salão e poupar em transporte de ligação. Acabou por ser uma opção ainda mais certeira, pois permitiu contornar os cortes de estrada da altura, resultantes dos protestos dos agricultores.
O hotel, a cerca de 15 minutos a pé, não foi necessariamente a melhor opção, mas a possível. Com uma reserva mais atempada, é possível encontrar soluções mais económicas a cinco ou seis minutos. Para referência, o quarto single com pequeno-almoço, ficou pelos 140€.
O bilhete da Retromobile custa 24€ por dia, ou 19 na compra online, havendo um preço especial de 12€ dos 12 aos 16 anos (a entrada é gratuita para menores de 12).
Chegar e tomar decisões...
Depois da entrada na Expo Port de Versailles, é preciso, antes de mais, encontrar um cacifo para guardar a bagagem e pagar mais uns seis eurinhos... Depois, há que decidir por onde começar. Se só tiver um dia para explorar a feira, vá directo ao que interessa, o mundo dos sonhos, onde estão os principais expositores. Se tiver mais tempo, aponte o azimute ao fim da feira e faça tudo em sentido contrário. Foi essa a nossa opção, embora nos tenhamos detido mais vezes do que ideal no caminho, porque... é irresistível.
Esta escolha permite percorrer o salão num “crescendo”: primeiro visita-se a área de venda de automóveis de comerciantes e particulares que tem um “tecto” de 25.000€. Esta iniciativa da organização é relativamente recente e veio trazer mais motivos de interesse ao comum dos mortais. Havia propostas interessantes, desde projectos de restauro a bons desportivos, passando por um Citroën AX 10 RE com... zero quilómetros!
Dentro deste tecto de 25.000€ ainda era possível adquirir automóveis especiais, como um Mercedes-Benz SL R129 300-24, os dois Corvette C4, ou mesmo um Peugeot 304 Coupé. Para os mais corajosos, havia bases de restauro como um Datsun 240Z ou Alfa Romeo Spider S2.
Monthléry, um aniversário excepcional
Um dos grandes pontos de interesse da edição de 2024 da Retromóbile foi a exposição dedicada à celebração do centenário do mítico Circuito Linas-Monthléry. Uma história que começou da pior forma - com a estreia marcada pela morte de Alberto Ascari - mas que teve inúmeros momentos gloriosos, nomeadamente os sucessivos recordes de velocidade que foram sendo batidos no traçado oval (um de vários que o circuito permite).
Esta exposição era focada, sobretudo nesses modelos, cujas formas, definidas pela função, resultam em veículos verdadeiramente espectaculares. De entre os muitos modelos que compunham a exposição, destaque para o famoso Peugeot 404 Diesel monolugar,, para o Bugatti Type 32 “Tank”, o Hotchkiss AM80, o Leyland-Thomas Nº1, o SEFAC Grand Prix a Moto Guzzi C4V, entre outros.
MG, o outro grande centenário
Poucas marcas têm um peso tão grande no universo dos clássicos, quanto a MG, sobretudo por ter na sua história muitos modelos pensados para entusiastas, mas sempre acessíveis. Por isso, e pelo seu impacto no desporto automóvel, a comemoração do centenário merecia o destaque que lhe foi dado em 2024, com evidente impulso dos novos proprietários chineses, que aproveitaram o momento para promover o Cyberster, novo roadster eléctrico que esteve presente num exemplar pré-produção.
Para lá de todos os mais emblemáticos modelos da história da marca, muitos deles de competição, o destaque desta extraordinária exposição vai, naturalmente, para duas jóias: os protótipos usados para recordes de velocidade. O EX135 de 1938, tinha uma carroçaria inspirada nos Mercedes-Benz e Auto-Union “streamlined”, e bateu recordes nas categorias 350cc, 500cc, 750cc, 1100cc e 1500cc, chegando a rolar bem acima dos 300km/h.
Mais famoso, tendo sido a figura de cartaz da edição deste ano da Retromobile, o EX181 foi o último recordista da marca. Equipado inicialmente com um motor do MGA 1.5 com compressor, chegava aos 290cv e foi pilotado por Stirling Moss, a 393km/h. Mais tarde, equipado com um motor de dois litros, atingiria os 408km/h pelas mãos de Phil Hill.
As outras marcas
Os construtores apostam muitas vezes na Retromobile como forma de promover a sua imagem com base na herança histórica, mas nesta fase algo incerta da evolução do automóvel, nota-se uma certa diminuição destas participações institucionais.
A Volkswagen, no entanto, não poderia deixar de vir festejar os 50 anos do seu best-seller o Golf, numa exposição que pecava por ser demasiado cinzenta. A Skoda celebrou antecipadamente o seu centenário, com uma curiosa mostra de todos os modelos relevantes do início da sua existência.
De todas as marcas, a que mais impressionou na sua presença, foi a Renault. O mote foi o “teaser” do novo Renault 5 eléctrico, então representado apenas por esculturas em tamanho real com as formas do modelo que viria a ser apresentado semanas depois.
No entanto, o verdadeiro atractivo estava no conjunto de automóveis recordistas de velocidade que a marca juntou, entre os quais o célebre Étoile Filante, movido por um motor de turbina com 270cv e que, em 1956, atingiu os 308,85km/h num percurso de 5km em Bonneville. Presentes estavam também o imponente Renault 40CV de 1926, que além de ser capaz de rolar acima dos 190km/hm percorreu quase 4200km a uma média de 173,6km/h, e a réplica do incrível Nervasport des Records, que em 1934 percorreu mais de 8000km a uma média de 167,4km/h.
Junto com estes ícones, estava a réplica do Caudron C460 Rafale, avião de motorização Renault que, em 1934 bateu também recordes de velocidade e que agora dá nome ao novo e desinspirado SUV eléctrico da marca.
A Mercedes-Benz também esteve directamente representada, mas pelo seu departamento de clássicos, denominado Heritage, que apresentou três 300 SL para venda, dois meticulosamente restaurados e um “barn-find”.
Mas a grande estrela (em mais do que um sentido) foi o raramente visto o W194/11 de 1953, mais conhecido por “Hobel” (plaina). Este exemplar foi concebido como o sucessor do 300 SL original que, em 1952, dominou as Mille Miglia, o GP de Nürburgring e a Carrera Panamericana, mas nunca passou da fase de protótipo.
A Porsche, por sua vez, fez uma comemoração antecipada dos 50 anos do 930, designação interna do 911 Turbo. Para isso, expôs um exemplar ao lado do eterno 935 Turbo de 1977 nas cores Martini.
Dakar, dos 0 aos 45
Na ligação entre pavilhões estava uma das exposições temáticas mais interessantes do salão, tendo representada quase toda a história do maior rali-maratona do mundo.
Os primórdios do Dakar estavam simbolizados na famosa moto que Tierry Sabine, que este teve de abandonar na sua experiência de quase morte no rali Abidjan-Nice de 1977 e que viria, por um incrível acaso, a redescobrir nos reconhecimentos para a edição de 1986 do Dakar, aquela em que perderia a vida no trágico acidente de helicóptero. Moto essa que o seu pai decidiu oferecer a Cyril Neveu, que venceu por cinco vezes a prova.
Presente na exposição estava a moto da sua primeira vitória, a Yamaha XT500. Ainda nas duas rodas, destaque para a presença de uma das quatro Vespa P200E que alinharam e terminaram a edição de 1980. Entre outros ícones presentes, realce para a Renault 4 Sinpar dos irmãos Marrea, o bizarro Joules 6x4, o Porsche 959 de Jacky Ickx, , o Peugeot 405 T16 de Vatanen e um dos actuais Audi E-tron.
O fascínio do invulgar
Uma boa parte do encanto da Retromobile são os automóveis de sonho, aqueles que preenchem o nosso imaginário, os posters dos nossos quartos de infância, ou as cadernetas de cromos que coleccionámos. Mas há um outro universo fascinante, que é o da singularidade, já que neste salão é possível encontrar preciosidades únicas ou tão raras que é quase impossível encontrá-las noutro evento.
Um dos exemplos mais evidentes é, claro está, o Bugatti Type 57 Atlantic, um dos três existentes. Sendo certo que este exemplar trazido por Lukas Hüni é aquele que tem a história mais conturbada, não deixa de ser uma visão extraordinária. O mesmo se pode dizer do único Porsche 917 convertido para uso civil para o seu primeiro proprietário, Conde Rossi, da Martini.
E falando de personalidades influentes do mundo automóvel, poucas são mais relevantes do que Max Hoffman, o famoso agente de marcas europeias de luxo nos EUA, responsável pela existência de vários dos mais influentes modelos da história. À venda pela Messina Classics estava o seu automóvel pessoal, um exemplar único do Jaguar XK120 SE, com uma elegante carroçaria coupé da Pinin Farina. Ao lado, outro exemplar único, o Alfa Romeo 6C 2500 SS Colli Spider que venceu a classe nas Mille Miglia em 1948.
Outro avistamento improvável é a réplica de Bugatti Royale da colecção Schlumpf, trazida pela Vintage & Prestige. Apesar de tudo, não tão especial como dois automóveis que, na nossa opinião, foram os dois grandes destaques do salão, disputando um hipotético prémio de excentricidade.
O mais moderno dos dois é o Schuppan 962CR trazido por Simon Kidston. Este exemplar é um de seis produzidos pelo australiano Vern Schuppan, com base no emblemático Porsche 962. Este automóvel usa um chassis unitário em carbono produzido pela Reynard e o motor é uma versão alargada do usado em competição. Assim, o Schuppan pesava 1050kg para mais de 600cv, o que lhe permitia atingir os 100km/h em 3,5 segundos e superar os 370km/h de velocidade máxima.
O outro campeão da excentricidade – mas também de elegância - presente na Retromobile, foi o protótipo do Voisin C28 Aerosport de 1935, do qual se acredita que apenas quatro exemplares foram produzidos. Alvo de um restauro de oito anos, apresenta uma condição excepcional e representa o “canto do cisne” da marca de Gabriel Voisin.
Os sonhos de todos
Visitar o salão parisiense é uma oportunidade de “conviver”, com aqueles modelos de sonho mais previsíveis. Aqueles que nos fazem parar o “scroll” nas redes sociais e que de tão especiais são consensuais, mas raramente avistados ao vivo. Aqui, todos eles parecem vulgares.
Gullwing? Havia oito. Ferrari 250 GT SWB? Apenas cinco. Daytona Spyder eram dois e 275 Nart Spyder também... F40? Só três e outros tantos Lamborghini Miura. EB110 também havia dois, assim como o “neto” Cientodieci. E como ele, outros supercarros estratosféricos, como o Aston Martin Valkyrie, o McLaren Senna GTR e o P1, ou o AMG One.
E lá no alto do Olimpo, não podiam ficar sem menção os dois Ferrari 250 GTO. Max Girardo levou até paris o chassis #4675GT, um dos últimos exemplares produzidos, já na carroçaria desenhada por Pininfarina. Um exemplar com uma curta carreira competitiva, mas com proprietários ilustres, como Jim Hall (da Chaparral), David Piper e, mais recentemente, Chris Evans. A última vez que trocou de mãos foi em 2013, por 40 milhões de dólares.
Simon Kidston, por sua vez, apresentou o chassis #3729GT, este de carroçaria Scaglietti, cujo dono original foi John Coombs. Este exemplar foi extensamente utilizado em competição na sua época, tendo sido pilotado por nomes como Roy Salvadori, Graham Hill, Mike Parkes e Jack Sears, tendo este último adquirido o exemplar em 1970, vendendo-o somente em 1999 ao actual proprietário.
Recentemente restaurado, foi devolvido ao branco original, após décadas vestido de vermelho. Uma visão deslumbrante e hipnótica, que simboliza bem a superlatividade deste salão, a que nenhum verdadeiro entusiasta pode faltar. Essa será, seguramente, a opinião dos mais de 130.000 visitantes que passaram em 2024 pela Expo Porte de Versailles.
Se vai à edição de 2025, votos de boa viagem, se não vai, prepare-se já para 2026!